DISPARIDADES URBANO-RURAIS NA MORTALIDADE POR SUBGRUPOS DE CAUSA NOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS
Thalyta Cassia de Freitas Martins[1]
Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ)
José Henrique Costa Monteiro da Silva[2]
Latin American Demographic Centre (CELADE)
zecostamonteiro@gmail.com
Raphael Mendonça Guimarães[3]
Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ)
raphael.guimaraes@fiocruz.br
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Resumo
Palavras-chave: Transição demográfica; Transição epidemiológica; Disparidades urbano-rurais; Desigualdades em saúde.
URBAN RURAL DISPARITIES IN MORTALITY BY SUBGROUPS OF CAUSE IN BRAZILIAN MUNICIPALITIES
Abstract
Keywords: Demographic transition; Epidemiological transition; Urban / rural disparities; Health inequalities.
1 INTRODUÇÃO
A transição urbana é a transição de uma sociedade tradicional (ou feudal) para uma sociedade moderna (ou urbana e industrial). Essa transição influenciou a transição demográfica, e as primeiras abordagens teóricas da Transição Demográfica originaram-se na Teoria da Modernização, que afirma que os ganhos de produtividade da economia possibilitaram o aumento da oferta de bens e serviços, especialmente alimentação, educação e saúde, gerando a condições para a queda nas taxas de mortalidade (NIJMAN, 2019). A fertilidade permaneceu alta como resultado de doutrinas religiosas, códigos morais e costumes comunitários e familiares da sociedade tradicional. Ela diminuiu apenas anos depois, quando, devido às mudanças no modo de vida da sociedade moderna, a relação custo / benefício das crianças e os costumes também mudaram (HARPHAM; STEPHENS, 1991).
Sabe-se que o padrão de morbimortalidade está diretamente relacionado ao perfil sociodemográfico. Em primeiro lugar, a transição demográfica determina o processo de transição epidemiológica, que trouxe aumento da morbimortalidade por doenças e doenças não transmissíveis, e a diminuição progressiva das doenças infecciosas (OMRAM, 2005; SANTOSA et al, 2014). Nesse sentido, considerando os efeitos da transição urbana tanto na transição demográfica quanto na epidemiológica, é razoável supor que espaços rurais e urbanos distintos apresentam perfis de adoecimento e morte de suas populações.
Singh e Siahpush (2013) mostram que as causas de morte que mais contribuem para a crescente disparidade rural-urbana e maior mortalidade rural incluem doenças cardíacas, lesões não intencionais, doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), câncer de pulmão, derrame, suicídio, diabetes, nefrite, pneumonia / influenza, cirrose e doença de Alzheimer. No entanto, existem algumas diferenças devido a causas específicas de morte, mesmo dentro dos grupos tradicionalmente analisados pela CID-10. Nesse sentido, o objetivo deste estudo é investigar as taxas de mortalidade, segundo os maiores grupos de causas e subgrupos de óbitos no Brasil, segundo o porte do município: pequeno, médio e grande porte.
2 MÉTODOS
Desenho do estudo e fonte de dados
Foi realizado um estudo ecológico com dados locais do Brasil. Foi obtida a projeção populacional do Instituto Brasileiro de Estatística (IBGE) para todos os municípios brasileiros para o ano de 2018. Além disso, foram coletados os dados de mortalidade do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SUS), um banco de dados de saúde pública organizado e mantido pelo Ministério da Saúde do governo brasileiro (DATASUS/MS). Foram considerados os seguintes grupos de causas: doenças infecciosas, neoplasias, doenças cardiovasculares, doenças respiratórias e causas externas, todas igualmente para o ano de 2018.
Classificação dos municípios
Os municípios brasileiros foram classificados de acordo com os critérios estabelecidos pela OCDE (1994), considerando as seguintes premissas: pequeno porte (<50 mil habitantes e densidade populacional <80 hab./km²), médio porte (entre 50 e 100 mil habitantes ou densidade populacional > 80 habitantes / km², embora a população seja <50 mil habitantes) e grande (> 100 mil habitantes).
Classificação das mortes
Foram calculadas as taxas de mortalidade geral e específica por grupo de causas para os grupos de municípios. Em seguida, as taxas de mortalidade para os subgrupos de causas de morte foram obtidas de acordo com o Código Internacional de Doenças (CID-10), considerando diferentes categorias de doenças para cada um dos grupos. A Tabela 1 mostra os códigos para definição de subgrupos, com base na literatura (COSBY et al, 2019).
Tabela 1: Códigos CID-10 de acordo com o subgrupo da causa do óbito. |
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Fonte: Elaborado pelo autor. |
Análise de dados
Foi calculada a taxa de mortalidade padronizada para cada subgrupo de causas de morte, para cada município, pela população padrão proposta por Doll e Payne (1966). A partir dessas informações, foi possível calcular a média de cada grupo de municípios e o respectivo desvio padrão. Por fim, as cidades foram comparadas por meio do teste ANOVA e foi obtida a significância estatística da diferença entre os grupos. A construção do banco de dados foi realizada no software OpenOffice Calc 3.0, e a análise dos dados deste estudo foi realizada por meio do R versão 3.6.0.
3 RESULTADOS
Um total de 5. 565 municípios foram incluídos. Houve uma grande variação no número de cidades em cada grupo, como era de se esperar, uma vez que a maioria das cidades brasileiras é de pequeno ou médio porte. No entanto, em relação à variabilidade, é interessante notar que os desvios-padrão mais extensos estão no grupo de pequeno porte.
Os achados da presente análise apontam para diferenças na ocorrência de mortalidades por um grupo de causas quando se compara o tamanho dos municípios, o que seria uma medida indireta da ruralidade desses municípios (Tabela 2). O grupo com as taxas mais altas são as doenças cardiovasculares, e o grupo com as taxas mais baixas é o grupo de doenças infecciosas para os três grupos. Porém, não há linearidade de crescimento ou diminuição das taxas quando se observam municípios de pequeno, médio e grande porte para todos os grupos de doenças. Para as doenças cardiovasculares, existe um gradiente de taxas decrescentes à medida que aumenta o tamanho do município. Para neoplasias, doenças respiratórias e doenças infecciosas, não há gradiente.
A análise das taxas de mortalidade entre os subgrupos de causas (Tabela 3) mostra que as doenças cerebrovasculares, grupo dos cânceres associados às infecções, doenças infecciosas agudas e doenças respiratórias agudas, apresentam maior mortalidade nos municípios rurais e diminui com o aumento dos municípios (o que implica maior urbanidade nas cidades). Na direção oposta, as doenças isquêmicas do coração, os cânceres de estilo de vida, as doenças pulmonares obstrutivas crônicas e as doenças infecciosas que evoluem para a cronicidade são maiores em grupos de municípios tipicamente urbanos. É importante ressaltar que, no primeiro caso, as condições estão mais associadas ao diagnóstico tardio, ou são tratadas de forma inadequada, indicando falha nos serviços de saúde. O segundo grupo representa um conjunto essencial de causas de morte em lugares mais desenvolvidos.
Tabela 2: Estatísticas de mortalidade segundo causas de óbito por porte do município. Brasil, 2018. |
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*Legenda: DP = desvio padrão Fonte: Elaborado pelo autor. |
Tabela 3: Taxas de mortalidade segundo causas de óbito por porte do município. Brasil, 2018. |
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Legenda: a. Doença cardiovascular; b. Câncer c. Doenças respiratórias d. Doenças infecciosas e. Doenças Cerebrovasculares f. Doenças isquêmicas do coração g. Neoplasias relacionadas a doenças infecciosas h. Neoplasias relacionadas ao estilo de vida i. Infecções respiratórias agudas (superior e inferior) Fonte: Elaborado pelo autor |
3. 1 DISCUSSÃO
O presente estudo aponta diferenças na ocorrência de mortalidade por grupo de causas ao comparar o tamanho dos municípios, o que seria uma medida indireta da ruralidade desses municípios (OCDE, 1994),
Em relação às doenças cardiovasculares, há diferença entre as doenças cerebrovasculares e as doenças isquêmicas do coração. O primeiro grupo parece estar mais associado a quadros hipertensivos diagnosticados recentemente ou tratados inadequadamente, indicando falha nos serviços de saúde. Por outro lado, as DIC são a principal causa de morte em países desenvolvidos e devido a algumas condições crônicas e inesperadas (GUIMARÃES et al, 2015),
A descrição do câncer se deve à teoria da transição do câncer, que vê uma mudança de uma predominância de casos de câncer ligados a infecções (países em desenvolvimento) para cânceres associados a fatores de risco que são principalmente não infecciosos e possivelmente relacionados a um chamado estilo de vida ocidental (países desenvolvidos (Bray et al, 2012), neste caso, os cânceres de orofaringe, cervical, estômago e fígado fazem parte do grupo de etiologia infecciosa, e câncer de mama, pulmão, próstata e colorretal para o grupo com etiologia não contagioso,
O grupo das doenças respiratórias inclui as infecções respiratórias agudas (altas ou baixas) e as doenças pulmonares obstrutivas crônicas. Esse critério é visto que a poluição do ar, que se agravou com os processos de urbanização e industrialização, piora o prognóstico da qualidade do ar nas grandes cidades, impactos sobre as vias respiratórias crônicas doenças (SUHRABI et al, 2020),
Finalmente, os residentes rurais tendem a ser mais vulneráveis a doenças infecciosas. No entanto, algumas das doenças infecciosas emergentes ou reemergentes tendem a ser crônicas, como tuberculose, AIDS e hepatite C. Parte da explicação é que a urbanização leva ao aumento sobrevivência, e por isso, estudos recentes associam este grupo específico às áreas urbanas (NEIDERUD, 2015).
É importante enfatizar que as diferenças nas características rurais / urbanas são suficientes para explicar as diferenças na mortalidade, entretanto, essa relação muda com o tempo. Portanto, é essencial considerar em qual fase da transição epidemiológica está sendo considerada para discussão (SPENCER et al, 2018), ainda assim, pode-se supor a classificação da condição de área rural ou urbana como uma proxy das diferenças nas características econômicas e demográficas entre os municípios, e essa pode ser a verdadeira explicação para a diferença (JEDWAB; VOLLRATH, 2019),
4 CONCLUSÃO
Ressalta-se que a discussão sobre os diferenciais de mortalidade urbano-rural precisa ser aprimorada, pois, embora haja alguma vantagem na expectativa de vida rural, isso não significa que seja uma vantagem na expectativa de vida saudável, haja vista que este grupo residente possui uma maior vulnerabilidade a certos grupos de doenças, conforme demonstrado neste estudo,
Nesse sentido, destaca-se a importância da promoção de programas de saúde pública que tenham como foco a população rural de alta pobreza, visto que estes se configuram como uma estratégia promissora para lidar com disparidades na mortalidade. Portanto, o próximo passo é investigar a prevalência de alguns. doenças específicas em populações urbanas e rurais e para construir uma expectativa de vida livre de doenças para ambos os residentes.
REFERÊNCIAS
BRAY, F. et al. Global cancer transitions according to the Human Development Index (2008–2030): a population-based study. The Lancet Oncology, v. 13, n. 8, p.790-801, 2012. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22658655/. Acesso em: 02 jul. 2020.
COSBY, A. G. et al. Growth and Persistence of Place-Based Mortality in the United States: The Rural Mortality Penalty, American Journal of Public Health, v. 109, n.1, p.155‐162, 2019. Disponível em: Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22658655/. Acesso em: 02 jun. 2020. Acesso em: 02 jul. 2020.
DOLL, R.; PAYNE, P. Cancer incidence in five continents: a technical report. Berlin: Springer-Verlag, 1966.
GUIMARÃES, R.M et al. Regional differences in cardiovascular mortality transition in Brazil, 1980 to 2012. Revista Panamericana de Salud Pública. v.37, p.83-89, 2015. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/25915012/. Acesso em: 20 dez. 2019.
HARPHAM, T; STEPHENS, C. Urbanization and health in developing countries. World Health Stat Q. v. 44, n.2, p.62-69,1991. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/1926894/. Acesso em: 10 jun. 2020.
JEDWAB, R.; VOLLRATH, D. The urban mortality transition and poor-country urbanization. American Economic Journal: Macroeconomics, v.1, p.223–275, 2019. Disponível em: https://www.aeaweb.org/articles?id=10.1257/mac.20170189. Acesso em: 02 jun. 2020.
NEIDERUD, C. J. How urbanization affects the epidemiology of emerging infectious diseases. Infection Ecology & Epidemiology. v. 5, n.1, p. 1-9, 2015. Disponível em: How urbanization affects the epidemiology of emerging infectious diseases. Acesso em: 12 jun. 2019.
NIJMAN, J. Urbanization, and Economic Development: Comparing the Trajectories of China and the United States. In. FORREST, R; REN, J.;
OCDE. Créer des indicateurs ruraux pour étayer la politique territoriale, Paris: OCDE, 1994.
SANTOSA, A. The development and experience of epidemiological transition theory over four decades: a systematic review. Global Health Action. v. 15, n. 7, p. 1-16, 2014. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24848657/. Acesso em: 07 maio 2020.
SINGH, G. K; SIAHPUSH, M. Widening rural-urban disparities in all-cause mortality and mortality from major causes of death in the USA, 1969-2009, Journal of Urban Health, v. 91, n.2, p.272-292, 2013. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3978153/. Acesso em: 17 maio 2020.
SPENCER, J. C. Decomposing mortality disparities in urban and rural u,s, Counties. Health Services Research, v. 53, p. 4310-4331, 2018. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/29845634/. Acesso em: 01 fev. 2020.
WISSINK, B. (Eds). The City In China: New Perspectives On Contemporary Urbanism. Bristol, UK; Chicago, IL, USA: Bristol University Press, p.101-124, 2019.