A CLASSIFICAÇÃO INTERNACIONAL DE DOENÇAS E PROBLEMAS RELACIONADOS À SAÚDE (CID-11):

características, inovações e desafios para implementação

 

Maria Cristiane Barbosa Galvão[1]

Universidade de São Paulo

mgalvao@usp.br

Ivan Luiz Marques Ricarte[2]

Universidade Estadual de Campinas

ricarte@unicamp.br

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Resumo

Desde seus primórdios, a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) foi revisada e publicada com alguma periodicidade para refletir os avanços da saúde, da ciência e da sociedade. O objetivo deste texto é apresentar as características da CID, as principais inovações da CID-11, bem como apresentar os desafios para sua implementação. Para tanto, desenvolveu-se um estudo descritivo a partir dos documentos oficiais e ferramentas tecnológicas de referência para o entendimento da CID e suas diferentes versões. Em linhas gerais, a CID-11 incluiu seis novos capítulos, reformulou seu código alfanumérico, instituiu a pós-coordenação, estabeleceu a possibilidade de uma condição ser visualizada em mais de uma classe.  Para que a CID-11 possa ser adotada no Brasil, são necessários investimentos para sua tradução, disponibilização de infraestrutura de tecnologia da informação, formação de recursos humanos para o uso da CID-11 e para o incremento de suas competências informacionais e tecnológicas, pesquisas terminológicas e disseminação da CID-11, como já realizado em outros países.

Palavras-chave: Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde; Classificação; Saúde.

THE INTERNATIONAL CLASSIFICATION OF DISEASES AND RELATED HEALTH PROBLEMS (ICD-11)

characteristics, innovations and challenges for implementation

Abstract

Since its beginnings, the International Classification of Diseases and Related Health Problems (ICD) has been periodically revised and published to reflect advances in health, science and society. This text aims to present the characteristics of the ICD, the main innovations of the ICD-11, as well as presenting the challenges for its implementation. Therefore, a descriptive study was developed based on official documents and technological reference tools for understanding the ICD and its different versions. In general terms, ICD-11 included six new chapters, reformulated its alphanumeric code, instituted post-coordination, and established the possibility of a condition being visualized in more than one class. For the ICD-11 to be adopted in Brazil, investments are needed to translate the classification to Portuguese, to provide information technology infrastructure, to qualify human resources for the use of the ICD-11, to increase users’ informational and technological competence, to perform terminological research, and to disseminate the ICD-11, as has already been done in other countries.

Keywords: International Classification of Diseases and Related Health Problems; Classification; Health.

1  INTRODUÇÃO

As classificações costumam reunir percepções da realidade, seus fenômenos e objetos em grupos organizados sistematicamente a fim de facilitar tanto a compreensão desta mesma realidade como para facilitar trocas de conhecimentos e comunicações de forma mais rápida e padronizada. Classificações, costumeiramente, expressam uma perspectiva e uma visão de mundo dominante que nem sempre é compartilhada por todos os seres humanos e culturas, fato que pode gerar muitos conflitos, desconfortos e questionamentos, afetando não apenas a dimensão psicológica e cognitiva dos envolvidos em processos classificatórios, mas podendo afetar a forma de vida, os comportamentos individuais e coletivos, bem como a criação de estigmas. Não bastasse toda a complexidade e limitações para se construir uma classificação e mantê-la em uso, um ponto que se impõe é que a visão dominante sobre o mundo está em constante transformação e questionamento. Consequentemente, isso gera demandas científicas, culturais, políticas, religiosas para que ocorra a atualização das classificações. Esse processo é contínuo e interminável, dado que o objetivo principal das classificações é reunir a existência em classes determinadas, quase sempre questionáveis. Por tais razões, classificações expressam perspectivas de mundo e não verdades.

Desde seus primórdios em 1893, onde a Lista Internacional de Causas de Morte foi adotada pelo Instituto Internacional de Estatística (MORIYAMA; LOY; ROBB-SMITH, 2011), pode-se afirmar que a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) foi revisada e publicada com alguma periodicidade para refletir os avanços da saúde, da ciência e da sociedade. Entre seus embates históricos, pode-se encontrar, por exemplo, as lutas relacionadas à despatologização da homossexualidade (BACK et al., 2019; LAURENTI, 1984) e a mais recente inclusão do transtorno por jogos (BRINK, 2017). Em sua nova versão, a CID-11 surge com o objetivo de se adequar à era digital, à sociedade da informação e do conhecimento, trazendo diferentes modificações e adaptações, adicionando necessidades clínicas e migrando de uma estrutura estatística para uma classificação clínica para uso estatístico.

O objetivo deste texto é apresentar as características da CID, as principais inovações colocadas pela CID-11, bem como apresentar os desafios para a implementação desta nova versão. Para tanto, desenvolveu-se um estudo descritivo considerando os documentos oficiais e ferramentas tecnológicas de referência para o entendimento da CID e suas diferentes versões. Imagina-se que a presente contribuição possa ser de valia para estudantes, pesquisadores e profissionais do campo da saúde, bem como do campo da informática e da ciência da informação.

 

2 CARACTERÍSTICAS DA CID

 

A CID é uma ferramenta terminológica de caráter classificatório, mantida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que apresenta classes e subclasses de doenças, condições relacionadas à saúde e causas externas de doença ou morte, incluindo: doenças infecciosas e parasitárias; neoplasias; doenças do sangue; doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas; doenças do sistema circulatório; transtornos mentais e comportamentais; doenças do sistema nervoso; doenças dos olhos; doenças do ouvido; doenças do sistema respiratório; doenças do sistema digestivo; doenças da pele e tecido subcutâneo; doenças do sistema musculoesquelético e tecido conjuntivo; doenças do aparelho geniturinário; lesões, envenenamento e certas outras consequências de causas externas; gravidez, parto e puerpério; condições originadas no período perinatal; malformações congênitas, deformações e anormalidades cromossômicas; sintomas, sinais e achados clínicos e laboratoriais anormais; causas externas de morbidade e mortalidade; fatores que influenciam o estado de saúde e o contato com os serviços de saúde, etc.

A CID tem por objetivo permitir o registro, a análise, a interpretação e a comparação sistemática de dados de mortalidade e morbidade coletados em diferentes países ou áreas e em momentos diferentes. É empregada por 115 países, para todos os propósitos epidemiológicos gerais e muitos propósitos de gerenciamento de saúde. Incluem-se aqui a análise da situação geral de saúde de grupos populacionais, o monitoramento da incidência e prevalência de doenças e outros agravos à saúde, sendo adequada para estudos de aspectos financeiros de um sistema de saúde, como faturamento ou alocação de recursos. A CID em sua 11ª edição (CID-11) entrará em vigor nos países membros da OMS a partir de janeiro de 2022.

São usuários da CID profissionais da saúde, pesquisadores, profissionais de gerenciamento de informações de saúde, codificadores, trabalhadores de tecnologia da informação de saúde, analistas, formuladores de políticas, seguradoras, organizações de pacientes e empresas públicas e privadas.

A CID emprega um código alfanumérico padronizado que representa uma condição, problema, sintoma, sinal, diagnóstico, etc. Na Figura 1, o código alfanumérico 6C51 da CID-11 representa o termo Gaming disorder, que por sua vez pertence à classe de Disorders due to addictive behaviours, que por sua vez está na classe 06 Mental, behavioural or neurodevelopmental disorders. Dessa forma, compreende-se que Gaming disorder é um tipo de Disorders due to addictive behaviours que, por sua vez, é um tipo de 06 Mental, behavioural or neurodevelopmental disorders. Assim, dentro de uma classificação as classes mais específicas carregam a carga semântica das classes a que estão subordinadas. Em outras palavras, dentro de uma classificação, não se deve observar os códigos e seus significados de forma isolada e sim dentro dos contextos em que foram incluídos.

 

Figura 1 - Exemplo da relação entre código alfanumérico, termo e conceito na CID-11: 6C51 Gaming disorder

Fonte: World Health Organization, c2021.

 

Adicionalmente, as classificações mais contemporâneas também trazem o significado atribuído a cada código e termo. Nesse sentido, o código 6C51 e o termo Gaming disorder possuem o respectivo conceito:

 

Gaming disorder is characterised by a pattern of persistent or recurrent gaming behaviour (‘digital gaming’ or ‘video-gaming’), which may be online (i.e., over the internet) or offline, manifested by: 1. impaired control over gaming (e.g., onset, frequency, intensity, duration, termination, context); 2. increasing priority given to gaming to the extent that gaming takes precedence over other life interests and daily activities; and 3. continuation or escalation of gaming despite the occurrence of negative consequences. The pattern of gaming behaviour may be continuous or episodic and recurrent. The pattern of gaming behaviour results in marked distress or significant impairment in personal, family, social, educational, occupational, or other important areas of functioning. The gaming behaviour and other features are normally evident over a period of at least 12 months in order for a diagnosis to be assigned, although the required duration may be shortened if all diagnostic requirements are met and symptoms are severe. (WORLD HEALTH ORGANIZATION, c2021).

 

A apresentação do conceito permite, assim, um aprofundamento no conhecimento do código e do termo a fim de que sua aplicação seja adequada, consciente e consistente. Por tais razões, o uso de classificações demanda uma análise detalhada de sua aplicação e pertinência para cada situação, objeto ou fenômeno. Especialmente no caso da CID, por se tratar de uma classificação com implicações para a vida de indivíduos, famílias e sociedade, não se deve empregá-la de forma mecânica com um ou dois códigos previamente decorados. Pelo contrário, para usar a CID é necessário ter acesso ao seu conteúdo em completude. Dito de outro modo, é importante alertar que muitos aplicativos disponíveis na Internet trazem apenas o código com respectivo termo da CID, porém não contemplam as notas explicativas tão necessárias para que o usuário da CID faça um uso adequado de seu conteúdo. Logo, as consultas às fontes oficiais da OMS são sempre recomendadas.

Outra característica importante das classificações contemporâneas é apresentar situações para as quais um código ou um termo não se aplica. Assim, por exemplo, ao analisar-se o código MG2A Old age, apresentado na Figura 2, observa-se que estão incluídos sob este código as seguintes condições: old age without mention of psychosis; senescence without mention of psychosis; e senile debility. Por outro lado, este código não se aplica à Senile dementia (6D80-6D8Z), que possui códigos específicos. Quando um profissional de saúde precisa atribuir um código a um determinado paciente, ele deve ter segurança desta tomada de decisão, visto que isso impactará a vida do paciente e até de sua família. Saber em que situações um código não se aplica gera uma confiança de estar se tomando a decisão certa e adequada. Dessa maneira, a consulta às notas explicativas é fundamental para diminuição de atribuições erradas de códigos a condições de pacientes.


 

 

Figura 2 - Exemplo de inclusões e exclusões na CID-11: MG2A Old age

Fonte: World Health Organization, c2021.

 

3 INOVAÇÕES DA CID-11

 

O uso de qualquer tipo de classificação demanda a observação de qual é a versão vigente e adotada em um dado contexto, visto que as diferentes edições podem trazer abrangências e conteúdos diferentes. Em sua estrutura, a CID-11 passa a ter 28 capítulos, seis a mais que a CID-10. São eles:

 

01 Certain infectious or parasitic diseases 

02 Neoplasms 

03 Diseases of the blood or blood-forming organs

04 Diseases of the immune system 

05 Endocrine, nutritional or metabolic diseases

06 Mental, behavioural or neurodevelopmental disorders 

07 Sleep-wake disorders 

08 Diseases of the nervous system 

09 Diseases of the visual system 

10 Diseases of the ear or mastoid process

11 Diseases of the circulatory system 

12 Diseases of the respiratory system 

13 Diseases of the digestive system 

14 Diseases of the skin

15 Diseases of the musculoskeletal system or connective tissue

16 Diseases of the genitourinary system

17 Conditions related to sexual health

18 Pregnancy, childbirth or the puerperium 

19 Certain conditions originating in the perinatal period 

20 Developmental anomalies 

21 Symptoms, signs or clinical findings, not elsewhere classified 

22 Injury, poisoning or certain other consequences of external causes 

23 External causes of morbidity or mortality 

24 Factors influencing health status or contact with health services 

25 Codes for special purposes 

26 Supplementary Chapter Traditional Medicine Conditions - Module I 

V Supplementary section for functioning assessment 

X Extension Codes

São novos em relação à CID-10 os capítulos 4 (Diseases of the immune system), 7 (Sleep-wake disorders), 17 (Conditions related to sexual health), 26 (Supplementary Chapter Traditional Medicine Conditions), V (Supplementary section for functioning assessment) e X (Extension Codes), este último utilizado exclusivamente para fins de pós-coordenação, ou seja, para combinação com os códigos principais quando recomendado. A CID-10 apresentava 10.607 códigos, enquanto a CID-11 contém 14.662 códigos, sendo identificável uma equivalência direta entre 4.037 termos das duas edições (FUNG; XU; BODENREIDER, 2020).

Uma segunda inovação importante é a alteração no formato dos códigos. O formato do código na CID-10 seguia um padrão LNN.N, formado por uma letra (L) referente ao capítulo, um código numérico de dois dígitos referente ao grupo (NN) e, se necessário e separado por um ponto, outro código numérico (N) específico da condição. Já a CID-11 adota o formato CLNC.CC. Tem na primeira posição um dígito ou letra (C) referente ao capítulo, uma letra (L) na segunda posição, um dígito (N) na terceira posição (para evitar a formação de palavras “estranhas” no código), outro dígito ou letra (C) e, se necessário e separado por um ponto, dois dígitos ou letras da condição (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2019b). Nas posições em que letras podem ocorrer, os caracteres O e I não são utilizados para evitar que sejam confundidos com os dígitos 0 e 1. A mudança de formato entre versões da classificação é uma estratégia para que hábitos de codificação em uma edição anterior não sejam automaticamente adotados na nova edição.

A Figura 3 traz um exemplo de diferenças entre a CID-10 e a CID-11, sendo possível observar mudanças no código alfanumérico do termo Leprosy. Como pode ser observado nessa figura, houve um enriquecimento conceitual, ou seja, a explicação do significado do código e do termo, permitindo uma melhor compreensão e aplicação em contextos reais.

Outra inovação da CID-11 é que, pela primeira vez, a classificação foi organizada com foco para uso no contexto digital, adequando-se aos avanços tecnológicos já iniciados em prontuários eletrônicos e em sistemas de informação em saúde contemporâneos.

É possível observar a vocação digital da CID-11 já em sua estratégia de organização principal. Ao contrário das edições anteriores, nas quais os códigos eram linearmente representados por meio de listas ou tabelas, o núcleo da CID-11 é a Foundation Component, uma base de conhecimento com todas as entidades codificadas e organizadas de maneira a facilitar a utilização e a incorporação em sistemas eletrônicos de informação em saúde (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2019b). A Foundation Component é uma coleção multidimensional de entidades e, portanto, há para algumas condições mais de um caminho possível para encontrar o código procurado. A Foundation Component é uma organização interna, não visível aos olhos humanos, mas que possibilita diferentes formas de buscas via browser, disponível em: https://icd.who.int/browse11/l-m/en. Por meio desta organização, uma condição pode ter múltiplos pais, ou seja, uma entidade pode estar em mais de um ramo da classificação.

 

Figura 3 - Exemplo de diferenças entre a CID-10 e a CID-11: Leprosy

CID-10

CID-11

Fonte: World Health Organization, 2019, c2021.

 

Por exemplo, na CID-10, que adota uma estrutura hierárquica clássica, os códigos para o grupo Pneumonia (J09-J18) só podem ser localizados no Capítulo X, Diseases of the respiratory system. Na CID-11, o grupo Pneumonia (CA40) foi alocado ao Capítulo 12, também com o nome Diseases of the respiratory system, subordinado ao grupo Lung infections. No entanto, o usuário pode encontrar o mesmo grupo no Capítulo 1 (Certain infectious or parasitic diseases).

Tradicionalmente, classificações podem ser pré-coordenadas ou pós-coordenadas. As classificações pré-coordenadas são aquelas em que as combinações entre diferentes conceitos já estão estabelecidas, não se podendo criar combinações novas. As classificações pós-coordenadas são aquelas em que se pode combinar um conceito de uma classe com um ou mais conceitos de outras classes. Uma classificação pós-coordenada clássica é a Classificação Decimal Universal, desenvolvida por Paul Otlet no início do Século 20. A cultura indiana também possui longa tradição na pós-coordenação, por meio da Colon Classification desenvolvida por S. R. Ranganathan e publicada em 1933 (MCILWAINE, 1997).

Uma das inovações da CID-11 é a proposição da pós-coordenação de forma sistemática, ou seja, é possível combinar códigos de diferentes classes desde que sejam seguidas as regras estabelecidas. Considerando a codificação para “Amoebic brain abscess”, que na CID-10 estava associado ao código (pré-coordenado) A06.6. Na CID-11, pode-se observar que não existe esse código pré-definido (Figura 4, à esquerda), porém na ferramenta de codificação há uma área de pós-coordenação com campos para complementar a informação (“Specific anatomy” e “Has manifestation”, Figura 4, à direita). Ao escolher o local da manifestação, “Brain” (código de extensão XA9738) e a manifestação “Intracranial abscess” (código 1D03.3), a ferramenta indica que codificação completa para essa condição, usando os operadores de pós-coordenação & (extension) e / (cluster), é 1A36.1&XA9738/1D03.3 (Figura 5).

 

Figura 4 - Ferramentas de pós-coordenação

Fonte: World Health Organization, c2021.

 

Figura 5 - Codificação na CID-11 para “Amoebic brain abscess

Fonte: Elaborada pelos autores a partir da World Health Organization (c2021).

 

Além do navegador, a OMS oferece também uma ferramenta de codificação na qual o usuário pode digitar no campo de busca uma descrição da condição observada ou do diagnóstico e os códigos candidatos associados são apresentados. A Figura 6 apresenta alguns dos códigos sugeridos pela ferramenta para “covid”.

 

Figura 6 - Ferramenta de codificação

Fonte: World Health Organization (c2021).

 

Claramente, o sucesso dessa estratégia de codificação está fortemente atrelado à disponibilização dessa base de conhecimento e suas ferramentas associadas para utilização direta ou incorporação a sistemas de prontuários eletrônicos ou de informação em saúde. Além do browser da CID-11 e sua ferramenta de codificação com as versões em inglês, espanhol, chinês e árabe, a OMS disponibiliza o acesso a esses recursos por meio de uma interface de programação (ICD API), com a qual usuários podem se registrar e acessar remotamente, através de suas aplicações, a CID-11 (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2021a). Para possibilitar a utilização sem depender de conexão permanente à Internet, a OMS disponibiliza recursos para a implantação local dessa API, incluindo versões locais do navegador e da ferramenta de codificação. No momento da redação deste artigo, há versões locais da API para a Plataforma Docker e para os sistemas operacionais Windows e Linux.

 

4 DESAFIOS PARA IMPLEMENTAÇÃO DA CID-11

 

O primeiro grande desafio para a implementação da CID-11 no Brasil é, certamente, a ausência de uma tradução disponível para a língua portuguesa. Embora português não seja uma das línguas oficiais da OMS, a tradução para essa língua é uma das prioridades por ela ser, assim como o alemão, associada a escritórios regionais da OMS (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2013).

A OMS disponibiliza, em sua plataforma de desenvolvimento da CID-11, uma ferramenta colaborativa para a tradução da Classificação, incorporando as traduções que porventura existam associadas à CID-10. Assim, todo esforço de tradução deve ser concentrado nessa plataforma, de modo que as ferramentas existentes para navegação e codificação possam ser utilizadas em diferentes idiomas e, quando disponíveis, em português. Deve se destacar que a disponibilização da CID-11 em português, com financiamento da OPAS, é um dos resultados previstos no Plano de Trabalho Bianual 2020-2021 da OPAS/OMS no Brasil (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE, 2020).

Outro desafio é a transição da CID-10 para a CID-11. O Brasil utiliza a CID-10 desde 1996 (GRASSI; LAURENTI, 1998), com apoio do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS) para sua implementação e disseminação eletrônica (BRASIL, 2021). Assim, é usual que os sistemas atuais incorporem, em alguma medida, funcionalidades de apoio à codificação em CID-10. Tais sistemas deverão sofrer uma atualização tecnológica para substituir tais funcionalidades pelo acesso, local ou remoto, às ferramentas da Foundation Component de CID-11.

Outro aspecto relacionado a essa transição é a continuidade nos registros regionais e nacionais de mortalidade e morbidade que, a partir de algum momento, terão os códigos alterados. Para apoiar esse aspecto da transição, a OMS disponibiliza diversas tabelas de mapeamento das correspondências entre a CID-10 e a CID-11. Há um mapeamento de código na CID-11 para o código de uma categoria na CID-10, atualmente com 17748 entradas; um mapeamento de código na CID-10 para o código de uma categoria na CID-11, com 12597 entradas; e um terceiro mapeamento de um código na CID-10 para múltiplas categorias na CID-11, com 15346 entradas (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2021b).

Considerando, por exemplo, o código 6C51.0 para Gaming disorder, predominantly online, uma das condições introduzidas na CID-11. O mapeamento da CID-11 para CID-10 estabelece que o código CID-10 correspondente é F63.8 (Other habit and impulse disorders). Já o mapeamento do código F63.8 da CID-10 para uma categoria da CID-11 estabelece a correspondência ao código 6C7Z (Impulse control disorders, unspecified), a categoria genérica. No entanto, no mapeamento para múltiplas categorias da CID-11 o código F63.8 aparece sete vezes, indicando que na CID-11 essa categoria foi aperfeiçoada para incluir outras condições, incluindo como possibilidades de novas codificações, além de 6C51.0, os códigos 6C73 (Intermittent explosive disorder), 6B25.Z (Body-focused repetitive behaviour disorders, unspecified), 6C51.Z (Gaming disorder, unspecified), 6B24.Z (Hoarding disorder, unspecified), 6C5Z (Disorders due to addictive behaviours, unspecified) e 6C51.1 (Gaming disorder, predominantly offline).

Portanto, o mapeamento da CID-10 para a CID-11 pode adotar, ao menos, dois caminhos: 1) empregar uma codificação mais genérica, caso não seja possível obter o detalhamento da condição que levou à codificação existente; 2) caso haja informação que permita o detalhamento, empregar o mapeamento para múltiplas categorias. No entanto, essas opções podem se tornar muito complexas quando consideramos milhares de registros de diferentes pacientes.

A OMS estima que a transição para a adoção integral da CID-11 em países que já utilizam a CID-10 levará de dois a três anos. Para tanto, os países precisam: 1) estabelecer um centro nacional de excelência, para centralizar esforços e oferecer transparência ao processo de adoção da CID-11; 2) manter o sistema existente durante a transição; 3) criar equipe de gestão e planejamento estratégico; 4) estabelecer estratégias de auto-avaliação; 5) estabelecer estratégias de mapeamento e comparabilidade; 6) realizar estudos com codificação dual (CID-10 e CID-11); 7) promover a utilização de CID-11 com terminologias e com sistemas de registros eletrônicos de saúde; e 8) apoiar os requisitos técnicos para alterar as ferramentas de codificação de mortalidade e morbidade em sistemas de informação em saúde (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2019a).

 

5 CONCLUSÃO

 

Desde sua origem, em que pese suas limitações classificatórias e históricas, a CID apresenta-se como uma importante referência para múltiplas ações de assistência, gestão, ensino e pesquisa no campo da saúde. Para que a CID-11 possa ser adotada no Brasil, são necessários investimentos em sua tradução, disponibilização de infraestrutura de tecnologia da informação, formação de recursos humanos para o uso da CID-11 e para o incremento de suas competências informacionais e tecnológicas, pesquisas terminológicas e disseminação da CID-11, como já realizado em outros países (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2019).

 

In Memorian

Dedicamos este texto a dois pesquisadores brasileiros de grande relevância para o estudo das classificações em saúde: o Prof. Dr. Ruy Laurenti e a Profa. Dra. Telma Ribeiro Garcia. O Prof. Dr. Ruy Laurenti foi diretor do Centro Colaborador da Organização Mundial de Saúde para a Família de Classificações Internacionais em Português, também conhecido pelo nome de Centro Brasileiro de Classificação de Doenças (CBCD), criado em 1976 por um convênio tripartite entre a Universidade de São Paulo, a Organização Pan-Americana da Saúde e o Ministério da Saúde. O CBCD teve sua colaboração com a OMS encerrada em 2016, meses após o falecimento do Prof. Laurenti. A Profa. Dra. Telma Ribeiro Garcia foi docente da Universidade Federal da Paraíba e trouxe contribuições inestimáveis para a produção e disseminação da Classificação Internacional da Prática de Enfermagem em território nacional e no cenário internacional até o seu falecimento ocorrido em 2019. Que o legado de ambos possa inspirar novas gerações para o estudo e pesquisa das classificações em saúde.

 

REFERÊNCIAS

BACK, Jhonatan Costa; SILVA, Laura Mendes da; PRADO, Layenne; CYRINO, Luiz Arthur Rangel. Despatologização da homossexualidade e transexualidade: revisão integrativa. Revista Família, Ciclos da Vida e Saúde no Contexto Social, Uberaba, v. 7, n. 3, p.378-389, Jul. 2019. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=497960141012. Acesso em 17 jun 2021.

 

BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde. CID 10. Brasília, DF: DATASUS, 2021. Disponível em: http://datasus1.saude.gov.br/sistemas-e-aplicativos/cadastros-nacionais/cid-10. Acesso em 17 jun. 2021.

 

BRINK, Wim van den. ICD-11 gaming disorder: needed and just in time or dangerous and much too early? Journal of Behavioral Addictions, Budapest, v. 6, n. 3, p. 290-292, 2017. DOI 10.1556/2006.6.2017.040

 

FUNG, Kin Wah; XU, Julia; BODENREIDER, Olivier. The new International Classification of Diseases 11th edition: a comparative analysis with ICD-10 and ICD-10-CM. Journal of the American Medical Informatics Association, Oxford, UK, v. 27, n. 5, p. 738–746, may 2020. DOI 10.1093/jamia/ocaa030

 

GRASSI, Paulo R.; LAURENTI, Ruy. Implicações da introdução da 10ª revisão da Classificação Internacional de Doenças em análise de tendência da mortalidade por causas. Informe Epidemiológico do Sus, Brasília, DF, v. 7, n. 3, p. 43-47,  set.  1998.  DOI 10.5123/S0104-16731998000300005

LAURENTI, Ruy. Homossexualismo e a Classificação Internacional de Doenças. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 18, n. 5, p. 344-345, out. 1984. DOI 10.1590/S0034-89101984000500002

 

MCILWAINE, Ian C. The Universal Decimal Classification: Some factors concerning its origins, development, and influence. Journal of the American Society for Information Science, New York, v. 48, n. 4, p. 331-339, 1997. DOI 10.1002/(SICI)1097-4571(199704)48:4%3C331::AID-ASI6%3E3.0.CO;2-X

 

MORIYAMA, I. M.; LOY, R. M.; ROBB-SMITH, A. H. T. History of the statistical classification of diseases and causes of death. Hyattsville, MD: National Center for Health Statistics, 2011. Disponível em: https://stacks.cdc.gov/view/cdc/5928. Acesso em 17 jun. 2021.

 

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[1] Professora Doutora na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

[2] Professor Titular na Faculdade de Tecnologia da Universidade Estadual de Campinas.