Biblioterapia, saúde mental e comunicação

Competências e habilidades para a atuação bibliotecária durante a crise sanitária

Meri Nadia Marques Gerlin[1]

Universidade Federal do Espírito Santo

merinadia@hotmail.com

Ricardo de Lima Chagas[2]

Universidade Federal de Santa Catarina

ricochagas@hotmail.com

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Resumo

Com o objetivo de identificar competências e habilidades necessárias à prática bibliotecária em espaços de informação, educação e cultura considera-se a contribuição da biblioterapia ao longo dos séculos até se constituir como uma estratégia de enfrentamento do sofrimento desencadeado pela pandemia, a crise sanitária mundial iniciada no final da segunda década do século XXI devido à Covid-19 (novo coronavírus). Por meio de um estudo qualitativo caracterizado como descritivo e como uma pesquisa bibliográfica realizada no âmbito da Ciência da Informação e áreas interdisciplinares, delineia-se um esquema metodológico compreendendo competências e habilidades de leitura e comunicativas. No que tange à competência leitora e ao saber fazer (habilidade) necessários ao uso de suportes com leituras informativas, literárias, entre outras modalidades destaca-se a capacidade de selecionar e disponibilizar narrativas, imagens, sons e outras linguagens (multimodalidade) que possam evocar diálogos terapêuticos e, não menos importante, leituras críticas e reflexivas durante a leitura (hiper)textual no espaço presencial e no ciberespaço. Em se tratando da competência comunicativa compreende-se a importância das suas habilidades para desencadear a interação verbal e não verbal durante os momentos biblioterapêuticos, conduzindo à acessibilidade e experimentação de uma escuta que precede o diálogo, o compartilhamento de experiências e o estabelecimento de uma situação de ajuda com base no uso de linguagens que traduzam sentimentos como o medo e a ansiedade, conduzindo ao fortalecimento da saúde mental e à resolução de problemas durante a crise sanitária. Depreende-se que tanto as competências leitora e comunicativa esquematizadas quanto o conjunto de habilidades identificadas são extremamente importantes aos processos biblioterapêuticos nas bibliotecas e noutros espaços visando o fortalecimento de uma prática bibliotecária que tende a conduzir à manutenção da saúde mental durante o cenário pandêmico.

Palavras-chave: Biblioterapia. Competências leitora e comunicativa. Habilidades de comunicação e leitura. Prática bibliotecária. Crise sanitária e Saúde mental.

 

BIBLIOTHERAPY, MENTAL HEALTH AND COMMUNICATION

Skills and abilities for librarianship during the health crisis

Abstract

With the objective of identifying competences and skills necessary for the bibliotherapy practice in spaces of information, education and culture, the contribution of this therapy over the centuries is considered, until constituting itself as a strategy to face the psychological suffering triggered by the pandemic, global health crisis started at the end of the second decade of the 21st century due to Covid-19 (new coronavirus). Through a qualitative study characterized as descriptive and as a bibliographic research carried out in the scope of Information Science, a methodological scheme is outlined showing reading and communicative skills and abilities. With regard to knowing how to do (skills) related to the use of supports containing contents of informative, literary readings, among other modalities, the ability to select and make available narratives, images and / or sounds (multimodality) that may evoke dialogs stands out therapeutic and, not least, critical and reflective readings in the face of the use of (hyper) textual reading in cyberspace. In terms of communicative competence, it comprises communicative skills to trigger verbal and non-verbal interaction during bibliotherapeutic moments, which are important for the accessibility and experimentation of listening that precedes the dialogue aimed at sharing experiences and, subsequently, for the establishment of a help situation based on the use of languages ​​that translate feelings such as fear and anxiety leading to problem solving. Both the competencies and skills outlined and the skills listed by the World Health Organization are extremely important for the bibliotherapeutic processes in libraries and other spaces that aim to strengthen mental health during the pandemic scenario.

 

Keywords: Bibliotherapy. Reading and communicative skills. Communication and reading skills. Librarian practice. Health crisis and mental health.

1  INTRODUÇÃO

A crise sanitária da Covid-19, causada pelo novo coronavírus, teve início na cidade chinesa de Wuhan, no final do ano de 2019, e, em seguida, espalhou-se rapidamente para outras regiões e países fazendo com que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarasse a situação de contaminação pelo novo coronavírus como uma pandemia. Esta crise gerou um impacto negativo para a humanidade, ocasionando, desta forma, o crescimento dos índices de mortalidade e mudanças rígidas nas relações interpessoais em nível mundial. Enquanto cresce a incerteza de perspectivas melhores no campo da saúde coletiva, intensificam-se problemas de natureza social, econômica e política, solicitando que se encontre formas para a melhoria das condições da saúde mental.

No território brasileiro, a situação de risco de contaminação pelo novo coronavírus fora acentuada no início do ano de 2020, acarretando à população o sentimento de angústia, de melancolia, de medo e de alteração do humor dos indivíduos, devido aos impactos diante do cenário provocado pela crise sanitária. Além dos problemas diretamente relacionados às questões de saúde coletiva, a sociedade também sofreu os impactos econômicos na produção e nos altos índices de desemprego, aumentando desta forma, a desigualdade social e a exclusão. Outro fator preponderante causados pela pandemia foram os problemas psicológicos decorrentes da perda dos vínculos afetivos pela necessidade do isolamento social para diminuir o contágio de contaminação do vírus. Este cenário tornou-se propício para o estado de sofrimento psíquico e de transtornos mentais como ansiedade crônica, depressão profunda e síndrome de pânico.

Pode-se dizer que, diante desse cenário da pandemia, houve transformações significativas no campo da informação, da comunicação e das tecnologias em geral. Para atendimento às necessidades informativas e educativas do sujeito contemporâneo intensificou-se a modalidade da comunicação virtual em tempo real (síncrona) e atemporal (assíncrona). A comunicação, principalmente a síncrona, aparece como uma importante alternativa para a manutenção do distanciamento social e para garantir a redução do contágio de um vírus que tem se mostrado letal. Mesmo que essas tecnologias venham a desempenhar um papel fundamental neste momento de crise, elas podem, também, provocar o risco do crescimento de doenças físicas e psíquicas em decorrência do uso indevido e do tempo excessivo de conexão no ciberespaço (espaço virtual).

O ciberespaço é caracterizado como um ambiente de aprendizagem colaborativa que culmina na manutenção das relações interpessoais durante a crise sanitária, resultando no fortalecimento da comunicação por meio da conexão em redes digitais e, em grande parte, sendo o responsável pela manutenção do atendimento remoto em espaços de informação, educação e cultura. Com a intensificação do uso das tecnologias de informação e comunicação desde o final do século XX, o ciberespaço fora fortalecido pela conexão de equipamentos eletrônicos em redes de comunicação com o auxílio da Web (ambiente da Internet) que na atualidade impulsiona processos de recuperação da informação, produção de conhecimento e interação social (LÉVY, 2010).

Com a pandemia o espaço virtual é expandido requerendo competências e habilidades comunicativas necessárias ao diálogo entres os sujeitos que enfrentam diferentes níveis de dificuldades de acesso à informação e aos recursos tecnológicos, para que se possa minimizar mundialmente a exclusão digital e social. Os profissionais que atuam em bibliotecas, escolas, arquivos, universidades e em outros ambientes que ampliam o contato com a população precisam estabelecer parcerias com seus pares, membros das comunidades atendidas, educadores, cientistas e profissionais da saúde, para que consigam propor ações efetivas ao atender necessidades informativas dos sujeitos em situação de crise durante a pandemia e ao encontrar novos meios de vida e trabalho a fim de contribuir com a manutenção da saúde coletiva.

Antunes (2020) permite colocar em análise um cenário pandêmico em que a desigualdade social impede desde o acesso à informação disseminada por meio de campanhas educativas que fornecem orientações de como ligar com o vírus, até os benefícios dos avanços científicos necessários em momentos de crise sanitária. O cenário excludente é ampliado pela propagação de um vírus que gera não apenas doenças respiratórias e físicas, mas também psíquicas podendo inclusive acentuar as barreiras de comunicação, o intercambiamento das experiências e as possibilidades de resoluções de problemas no campo da saúde.

Devido a um mal-estar coletivo que desconsidera as singularidades e as subjetividades dos sujeitos em situação de crise, apresentam-se alternativas direcionadas à manutenção da saúde mental não apenas no contexto clínico, mas também desenvolvidas em ambientes institucionais de informação, educação e saúde. Por conseguinte, destacam-se as atividades terapêuticas impulsionadoras de diálogos realizadas dentro e fora dos espaços tempos das bibliotecas públicas, de hospitais, escolares, universitárias e em outros ambientes de produção de informação orgânica e colaborativa como os arquivos empresariais, os espaços de registros da memória dos centros comunitários e as unidades municipais de saúde.

Entre uma das variedades de atividades terapêuticas e impulsionadoras do diálogo entre os sujeitos que habitam esses espaços em tempos de crise sanitária, a biblioterapia aparece como uma estratégia de prevenção e combate das situações de crise que ocasionam ou intensificam o sofrimento psíquico. Essa prática terapêutica pode ser implementada e desenvolvida por bibliotecários, cuidadores, enfermeiros, médicos, psicólogos, professores e outros profissionais que precisam mediar o diálogo entre aqueles que sofrem com os malefícios da pandemia do coronavírus. Ela pode ser viabilizada, na contemporaneidade, pela leitura multimodal (linguagem escrita, sonora, imagética, gráfica, gestual etc.) e pela percepção significativa da informação textual e hipertextual que é apropriada, por parte do profissional e do leitor, nos espaços presenciais e virtuais (híbrido).

Por meio da biblioterapia os processos de comunicação (hiper)textuais são alimentados pelo uso das novas tecnologias, proporcionando a reflexão e a interpretação de leituras solitárias e/ou coletivas presencialmente e/ou no ciberespaço. Desse modo, parte-se do princípio de que com o ciberespaço os processos de leituras textuais são ampliados com o auxílio do “[...] hipertexto [que] é constituído por nós (os elementos de informação, parágrafos, páginas, imagens, sequências musicais etc.) e por links entre esses nós, referências, notas, ponteiros, ‘botões’ indicando a passagem de um nó a outro” (LÉVY, 2010, p. 58). Pode-se dizer que esses nós funcionam como pontes que propiciam a comunicação intersubjetivas entre os indivíduos que estão em isolamento social.

O cenário apresentado requer pensar na criação de estratégias direcionadas ao desenvolvimento de competências, comunicativa e leitora, em processos dialógicos que a biblioterapia tende a proporcionar em espaços híbridos (GASQUE; SILVESTRE, 2017; GERLIN, 2020; SILVA; FERNANDES; LIMA, 2013; OUAKNIN, 1996; 2016; PETIT, 2009; SOLÉ, 2012). Essa terapia, portanto, deve ser alimentada por uma competência leitora potencializadora do ato crítico de ler e viabilizadora do uso de textos e contextos informativos, literários, lúdicos e dialógicos, requerendo conhecimentos de como selecionar e usar leituras multimodais alimentadas pela palavra escrita, oralizada, visual e sinalizada.

Diante dessa explanação, esta pesquisa tem como objetivo identificar as competências e habilidades comunicacionais dos profissionais bibliotecários para a prática biblioterápica no contexto da crise sanitária. Para atingir esse objetivo, buscou-se contextualizar a crise sanitária mundial iniciada no final da segunda década do século XXI, assim como, as suas consequências política, social, econômica, cultural e psicológicas provocadas pelo novo coronavírus; aponta as contribuições da biblioterapia ao longo dos séculos e a sua importância na contemporaneidade como estratégia de enfrentamento ao sofrimento psíquico desencadeado pela pandemia; e por fim, apresenta as competências e habilidades profissionais para o desenvolvimento e aplicação da prática biblioterápica em espaços híbridos.

Nessa direção, procura-se colocar em questão a criação de espaços tempos de diálogos com bibliotecários, dirigentes da rede pública de bibliotecas, profissionais da área de educação, saúde, cultura e demais interessados pelo diálogo interdisciplinar entre a biblioterapia e a saúde mental em tempo de crise sanitária e humana[3].

O cenário apresentado fornece elementos para a realização de um estudo qualitativo caracterizado como descritivo. Quanto aos procedimentos, trata-se de uma pesquisa bibliográfica realizada no âmbito da Ciência da Informação e campos interdisciplinares como a Biblioteconomia, a Comunicação, a Tecnologia da informação e a área da Saúde coletiva, permitindo elaborar um esquema metodológico para o desenvolvimento de habilidades de leitura e, ao mesmo tempo, o direcionamento para o uso de suportes informativos, literários, dentre outras modalidades. Irá permitir, também, a reflexão sobre a capacidade de selecionar e disponibilizar narrativas, imagens e/ou sons e outras linguagens capazes de evocar diálogos terapêuticos e, não menos importante, fortalecer a postura crítica e reflexiva diante do uso da leitura (hiper)textual no ciberespaço.

 

2  Saúde mental, pandemia e sofrimento psíquico

A saúde mental é um estado de bem-estar em que as pessoas lidam bem com situações de estresse no cotidiano e, mesmo assim, ainda continuam produtivas e capazes de contribuir com suas comunidades. Esse estado tem um valor intrínseco aos seres humanos, pois está diretamente relacionado com a maneira como interagem, se conectam, aprendem, trabalham e experimentam formas de como lidar com o sofrimento e a felicidade. A saúde mental contribui para que as pessoas desempenhem o seu papel dentro da família, das comunidades e da sociedade em geral (ONU, 2020b). Pode-se dizer que este estado de bem-estar subjetivo é o resultado de uma conexão psicológica-existencial do ser humano consigo mesmo, com os outros e com o seu entorno, ou seja, quando não há ruptura a partir de uma crise que venha afetar o estado mental dos indivíduos.

Uma crise se estabelece quando transformações de caráter brutal tornam extensamente inoperante os modos de regulamentação, social e psíquico, que até então estavam sendo praticados, colocando em situação de vulnerabilidade, homens, mulheres e crianças de acordo com os recursos materiais, culturais e afetivos que eles dispõem de acordo com o lugar que vivem. Essas crises se manifestam em transtornos semelhantes, uma vez que causam rupturas daquilo que era familiar, criando um sentimento de desamparo, de perda de projetos de vida, de esperança ameaçada e desilusão. O estranhamento diante de uma situação de crise pode despertar feridas antigas, reativar o medo do abandono e afetar a autoestima (PETIT, 2009).

O documento “Proteção da saúde mental em situações de epidemias”, da Organização Pan-Americana da Saúde, órgão subordinado à Organização Mundial da Saúde (OMS, OPAS), publicado em 2006, tinha como objetivo lidar com o enfrentamento da gripe aviária que se referia ao vírus alarmante, H5N1, que surgia naquele momento. Mesmo que esse documento seja de décadas passadas, ainda se mostra importante para se compreender as semelhanças entre a pandemia do passado e a pandemia atual, no que se referem às consequências sociais, econômicas e psicológicas da população. “A ocorrência de grande número de doentes e mortes e de enormes prejuízos econômicos no contexto de uma epidemia ou pandemia gera um alto risco psicossocial.” (OMS, OPAS, 2006, p. 2).

Neste sentido, uma situação gerada por um evento externo ultrapassa a capacidade emocional da pessoa de encontrar respostas para o enfrentamento da situação, deixando-a vulnerável, desequilibrada e incapacitada de adaptação psicológica diante da realidade. A vulnerabilidade é uma condição interna de um indivíduo ou grupo, que pode ser inerente ou ter sido adquirida, e que, diante de uma ameaça ou evento traumático, gera o dano psicológico (OMS, OPAS, 2006). Percebe-se que as situações de crises, independente das suas especificidades, ameaçam diretamente ou indiretamente a saúde mental dos indivíduos, interferindo no funcionamento da sociedade, como por exemplo, a crise sanitária da Covid-19 que está afetando o mundo e continuará trazendo consequências por um longo tempo em diversos aspectos.

Embora a crise da Covid-19 seja em primeiro plano relacionada à crise da saúde física, ela também está relacionada com uma grande crise da saúde mental se nenhuma ação for tomada. A saúde mental e o bem-estar da população mundial foram severamente impactados por esta crise sanitária, tornando-se urgente a promoção da saúde mental para manter o bom funcionamento da sociedade (ONU, 2020b). Durante uma pandemia espera-se que a população geral esteja frequentemente em estado de alerta, preocupa, confusa, estressada e com sensação de falta de controle frente às incertezas do momento. De acordo com as estimativas, apontam que entre um terço e metade da população exposta a uma epidemia pode vir a sofrer alguma manifestação psicopatológica, caso não seja feita nenhuma intervenção de cuidado específico para lidar com os fenômenos e sintomas manifestados durante e após a pandemia (FIOCRUZ, 2020).

Quando os laços sociais são rompidos, como por exemplo, por causa do isolamento social, espera-se que se tenha um alto nível de estresse que podem gerar problemas mentais de curto a longo prazo. A ansiedade e a angústia podem ser intensificadas naqueles que já tinham algum tipo de predisposição e podem surgir como sintomas em pessoas que anteriormente não passavam por esse tipo de sofrimento psíquico. Esses sintomas de angústia e ansiedade são compreensíveis durante a pandemia, uma vez que, além da separação dos entes queridos, as pessoas estão com medo da infecção, da perda de familiares e do risco da perda dos meios de subsistência. Além desses sintomas, estudos revelam um aumento significante do registro de sintomas depressivos em vários países. Para enfrentar a crise da pandemia, muitos recorrem negativamente ao uso de álcool, drogas, tabaco ou jogos online como forma de fuga ou alívio para lidar com essas situações de estresse, causando um impacto sobre os indivíduos, familiares e sociedade em geral (ONU, 2020b).

A Organização Mundial da Saúde e a Fundação Oswaldo Cruz apresentam guias com dicas para enfrentar consequências psicológicas e mentais do novo coronavírus. As incertezas causadas pela covid-19 estão gerando estresse na população que é afetada pelo risco de contaminação, incerteza, isolamento social e desemprego entre outros motivos. Estes documentos contemplam profissionais de saúde, crianças e idosos, líderes de equipes e pessoas em quarentena. As principais reações apresentadas como sofrimento psíquico para esses grupos são: medo de adoecer e morrer, de perder pessoas amadas, de perder do trabalho e os meios de subsistência, ser excluído socialmente por ter contraído o vírus, sofrimento em lidar com o isolamento durante a quarentena, não receber suporte financeiro. Diante das incertezas do mundo real, a população pode enfrentar sensações recorrente de impotência diante dos acontecimentos, irritabilidade, angústia, tristeza desamparo, tédios e solidão (ONU, 2020a; FIOCRUZ, 2020).

Outro fator relevante que merece destaque e que pode causar sofrimento psíquico na população durante o atravessamento de uma pandemia, diz respeito ao campo da informação. Os documentos oficiais alertam para os cuidados com relação à quantidade excessiva de informação, à desinformação e ao fenômeno das fake news.  Sobre esse aspecto, a FIOCRUZ (2020) orienta para que se busquem fontes de informação confiáveis em sites oficiais da saúde e reduza o tempo que se passa assistindo ou ouvindo as coberturas midiáticas. Seguindo esta mesma linha de raciocínio, a ONU (2020a) recomenda que reduza a leitura ou contato com notícias que possam causar ansiedade ou estresse. Menciona que as pessoas pesquisem informações e atualizações sobre a situação da pandemia uma ou duas vezes ao dia para evitar a quantidade excessiva e desnecessária de informação, uma vez que a enxurrada de notícias pode levar as pessoas à preocupação. Por isso que, durante uma pandemia, a população precisa ficar alerta e seguir as notícias confiáveis e evitar boatos e fake news que podem causar desconforto e aflição. Ainda neste sentido, pode-se afirmar que

As informações sobre catástrofes como as pandemias podem ser usadas de forma a potencializar e manipular o interesse mórbido do público. No entanto, deve ser nosso objetivo insistir no perfil ético e dos aspectos de sensibilidade humana com que se deve lidar com a informação sobre estes acontecimentos; os meios de comunicação devem contribuir de forma responsável para a tranquilidade cidadã, proporcionando notícias fidedignas e equilibradas que orientem corretamente. (OMS, OPAS, 2006, p. 18).

 

Como visto, é preciso informar a população adequadamente para que ela possa enfrentar os desafios necessários durante a crise sanitária da Covid-19, afinal, o sofrimento psíquico da população se difunde diante das incertezas. Muitas pessoas estão angustiadas devido aos impactos imediatos do vírus e as consequências decorrentes do isolamento social quando foram fisicamente distanciados dos entes queridos, ou seja, um estranhamento decorrente da perda dos vínculos afetivos.  Esse sofrimento psíquico tem relação direta com o medo de contaminação, da morte, receio de perder amigos e membros da família, além do enfrentamento de problemas econômicos decorrentes da perda ou do risco de perder a renda como meio de subsistência (ONU, 2020b).

O quadro de sofrimento psíquico é caracterizado como um problema patológico que afeta a saúde mental do indivíduo, causando mal-estar interior ao interferir na relação consigo mesmo e com os outros dentro de um processo de subjetivação. “Subjetivação refere-se aqui ao processo de apropriação discursiva através do qual o mal-estar é singularizado, adquirindo assim a forma de uma demanda, de uma queixa ou de um clamor” (DUNKER, 2004, p. 96). Do ponto de vista da atenção em saúde mental é preciso levar em consideração três fases distintas da pandemia levando em consideração as manifestações psicológicas e sociais da população.

 

Fases da pandemia

Manifestações psicológicas e sociais da população:

 

Antes

Expectativa de inevitabilidade com alto grau de tensão na população;

Supervalorização ou subvalorização (negação) da possível epidemia;

Características humanas preexistentes são potencializadas (positivas e negativas);

Ansiedade, tensão, insegurança e vigilância obsessiva dos sintomas da doença.

 

 

Durante

Medos, sentimentos de abandono e vulnerabilidade;

Perda de iniciativa;

Adaptação a mudanças nos padrões habituais de vida: restrições de movimentos, uso de máscaras, redução nos contatos físicos diretos, fechamento temporário de escolas etc.;

Ansiedade, depressão, lutos, estresse peritraumático, crises emocionais e de pânico, reações coletivas de agitação, descompensação de transtornos psíquicos preexistentes, transtornos psicossomáticos.

 

Depois

Medo de uma nova epidemia;

Comportamentos agressivos e de protesto contra autoridades e instituições. Atos de rebeldia e/ou de delinquência;

Sequelas sociais e de saúde mental: depressão, lutos patológicos, estresse pós-traumático, abuso de álcool e drogas, bem como violência;

Começa um processo lento e progressivo de recuperação.

Fonte: Adaptação da OMS e OPAS (2006).

 

A publicação da ONU (2020a) orienta diferentes grupos e nações que lidam com o crescimento do número da contaminação pela Covid-19, com o isolamento social, aumento da conexão digital no ciberespaço, estresse e incertezas e trabalho remoto inapropriado e, para isso, fundamenta-se nas orientações do “Guia de intervenção humanitária” contido na publicaçãoManejo clínico de condições mentais, neurológicas e por uso de substâncias em emergências humanitárias” (OMS, OPAS, 2020). Esses documentos são apresentados como uma estratégia para profissionais que atendem a um número elevado de pessoas no menor tempo possível em momentos de crise, demandando a organização de momentos de atendimento reduzidos (curto e flexível) devido a situação emergencial (OMS, OPAS, 2020, ONU, 2020a; 2020b).

            Portanto, diante do enfrentamento da crise sanitária da Covid-19 e das consequências psicológicas e sociais deixadas na população, antes, durante e depois da pandemia, requer que profissionais de diversas áreas da atuação possam pensar e desenvolver ações com o intuito de promover a saúde mental dos indivíduos. Essas ações podem ser aplicadas de maneira isolada, a partir de cada campo de atuação, ou a partir de um trabalho interdisciplinar que envolvam profissionais de diversas áreas do conhecimento humano, para lidar com o fenômeno complexo da saúde mental. Na área da Biblioteconomia, por exemplo, pode-se pensar como uma possibilidade de contribuição ao enfrentamento da pandemia e das consequências psicológicas e sociais, a biblioterapia, como uma atividade para aliviar o sofrimento psíquico e promover a cura a partir da leitura e da escuta singular como possibilidades. Para afirmar a importância dessa atividade terapêutica no contexto da pandemia, apesenta-se na próxima seção um panorama histórico que demonstra a biblioterapia desde as suas origens até a aplicação dessa técnica na sociedade atual.

 

3 DA ORIGEM DA BIBLIOTERAPIA AO SEU DESENVOLVIMENTO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

O termo biblioterapia é composto por duas palavras de origem grega, biblion e therafia, que significam “livro e terapia” (OUAKNIN, 1996; 2016). Com o passar do tempo a denominação da biblioterapia fora sendo associada à prática bibliotecária, uma vez que que a sua aplicabilidade passou a se desenvolver com mais frequência, ao longo do tempo, em bibliotecas de instituições de saúde mental, hospitais e clínicas com a finalidade de atendimento das demandas de cura e restabelecimento de problemas emocionais. “O seu caráter preventivo foi descoberto posteriormente, sendo aplicado junto a crianças, adolescentes e jovens, em escolas, bibliotecas e centros comunitários” (FERREIRA, 2003, p. 38).

Desde o Egito Antigo até a Idade Contemporânea é possível identificar na literatura especializada o uso e a apropriação de materiais de leitura disponibilizados em bibliotecas e outros espaços institucionais, para lidar com o sofrimento psíquico e os males da alma. Mesmo que os suportes de informação passaram por grandes transformações ao longo do tempo, tais como, o registro da escrita nas tábulas de argilas, nos pergaminhos, no papel e mais recentemente a informação registrada nos formatos digitais, na atualidade o livro ainda continua sendo o símbolo da biblioterapia. Ou seja, mesmo que a prática biblioterápica não mais se restrinja apenas ao uso desse suporte informacional, acaba simbolizando uma forte aproximação do livro com essa prática terapêutica milenar em termos de cronologia histórica (Quadro 1) (EYLER, 2014; FURNAN, 2002; SILVA, 2019).

Quadro 1 – A evolução da biblioterapia da antiguidade até a contemporaneidade

PERÍODO

SÉCULO

REGIÃO

REGISTRO DA PRÁTICA

Egito Antigo

Cerca de 3.200 a.C. até 30 a.C.

Norte da África e Oriente Próximo

O Faraó Rammséns II coloca no frontispício da sua biblioteca a frase remédio da alma

Grécia Antiga

Cerca de 1.100 a.C. até 146 a.C.

Eurásia (Europa e Ásia) e África

Os gregos utilizam a leitura como tratamento médico e espiritual ao denominar a biblioteca como remédio da alma

Roma Antiga

Cerca de 753 a.C. até 27 a.C. – O Império Romano se estende aproximadamente até o século V d.C. com a sua queda

Eurafrásia (Europa, África e Ásia)

Romanos, como Aulus Cornelius Celsus, utilizaram-se da leitura terapêutica como procedimento médico

Idade Média

Aproximadamente do século V ao século XV

Europa e outras regiões

Os textos sagrados eram recitados durante cirurgias em hospitais e utilizados em presídios para a recuperação física e mental

Idade Moderna e contemporânea

Aproximadamente do século XV ao presente século

Europa, América do Norte, Brasil na América do sul e outras regiões

Ações isoladas, implantação de programas após a 1ª Guerra Mundial e a implantação da prática em bibliotecas no espaço presencial e no ciberespaço.

Fonte: Elaboração própria (2021).

A biblioterapia remonta à prática do cuidado do ser humano em diferentes épocas da civilização humana, tais como no Egito, na Grécia e na Roma Antiga, momentos históricos em que as bibliotecas foram consideradas como casas nas quais se encontravam nos livros os remédios necessários para a vida, o corpo e a alma (OUAKININ, 1996). Diante dessas considerações históricas, torna-se possível identificar as funções terapêuticas no decorrer dos milênios e séculos passados:

No antigo Egito, o Faraó Rammsés II, colocou no frontispício de sua biblioteca a frase “Remédios para a alma”, e as bibliotecas se localizavam em templos denominados “casas da vida”. O romano Aulus Cornelius Celsus utilizou a leitura como procedimento médico, recomendando-a assim como a discussão de obras de grandes estudiosos da época para gerar o lado crítico de seus pacientes. A biblioteca [medieval] da Abadia de São Gall tinha exposta em sua entrada a seguinte frase “tesouro dos remédios da alma”. Os gregos utilizaram a leitura de livros como tratamento médico e espiritual e denominaram as bibliotecas como “a medicina da alma” (SANTOS; RAMOS. SOUSA, 2017, p. 4).

A utilização do acervo das bibliotecas para tratar das condições de adoecimento em instituições médicas e correcionais, como hospitais e presídios, são registradas na Idade Média, permitindo que essa terapia fosse referendada como forma de auxílio para recuperação de problemas físicos, mentais e comportamentais desde essa época até a Idade Moderna e Contemporânea (EYLER, 2014; FURNAN, 2002; LEITE; CALDIN, 2017). “Na Idade Média, os textos sagrados eram recitados durante as cirurgias. No contexto da Psiquiatria, a leitura foi vista como tendo grande valor após 1800, sendo bastante intensificada por médicos, nos Estados Unidos, no período de 1802 a 1853” (PINTO, 2005, p. 39). Diante dessas afirmações, percebe-se o quanto a prática da leitura com teor terapêutico atravessa períodos históricos da civilização, apresentando, também, a sua importância contexto do advento da Psiquiatria.

A implantação das bibliotecas em hospitais psiquiátricos é registrada no século XVIII na França, Inglaterra e Itália e, no século XIX, perante a utilização da leitura terapêutica por parte de religiosos em hospitais. Benjamim Rusch, pesquisador considerado como o pai da psiquiatria norte-americano, no ano de 1802, recomenda a biblioterapia para doentes de maneira geral e, em 1810, a prescreve especificamente para o tratamento de depressão, medos e fobias (FERREIRA, 2003; LEITE; CALDIN, 2017). Neste sentido, percebe-se o avanço no percurso da aplicação dessa técnica terapêutica que passa das enfermidades gerais para lidar com casos particulares de enfermidade ou sofrimento psíquico.

Apesar da identificação do uso da leitura como profilaxia em bibliotecas desde a antiguidade, na América do Norte “[...] somente por volta de 1916, o termo biblioterapia apareceu, tendo sido cunhado por Samuel McChord Srothers, em artigo publicado no Atlantic Monthy” (PINTO, 2005, p. 39). Seguindo a lógica argumentativa dessa autora, ela afirma que esse terno foi reconhecido na Biblioteconomia apenas a partir do ano de 1906, mesmo que em 1904 a biblioterapia tenha sido considerada como um campo interdisciplinar a ser explorado em bibliotecas públicas e bibliotecas de hospitais. No campo da Psicologia, o mesmo acontece décadas depois com registro desse termo somente a partir do ano de 1946 (PINTO, 2005).

As bibliotecas hospitalares nos Estados Unidos da América (EUA) dividem uma história com os próprios hospitais psiquiátricos, considerados como os antigos ‘abrigos para insanos’, foram importantes para a evolução dos serviços de saúde e, mais especificamente, no campo da saúde mental em meados do século XIX (SANTOS; RAMOS; SOUSA, 2017). O mesmo acontece na Inglaterra com a preservação da oferta de programas formais de biblioterapia no campo da saúde ao longo do tempo. Isso torna-se visível quando “Políticas de saúde atuais enfatizam a importância de prover informação e construir resiliência para enfrentar problemas de saúde mental” (LEITE; CALDIN, 2017, p. 57).

Enquanto essa prática fora fortalecida no cenário internacional durante e após o período da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), no contexto brasileiro fora registrada em hospitais psiquiátricos na década de 1930, havendo uma expansão da biblioterapia apenas no final do século XX. Na década de 1990 houve uma valorização dessa terapia com a criação da Casa da Leitura, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em parceria com a Biblioteca Nacional (SANTOS; RAMOS; SOUSA, 2017). Como acréscimo a este levantamento identifica-se que:

[...] as experiências com a biblioterapia foram implementadas em hospitais de São Paulo, no Instituto dos Cegos em João Pessoa, Instituto dos Cegos da Paraíba “Adalgisa Cunha”, em hospitais de Belém, etc. No Ceará, o Curso de Biblioteconomia da Universidade Federal do Ceará foi o pioneiro da biblioterapia [em 1994], com um projeto de pesquisa implantado no bloco de oncologia do Hospital Infantil Albert Sabin, para crianças com câncer, tendo lá permanecido [como projeto de extensão] até dezembro de 2000 (PINTO, 2005, p. 39).

No Brasil existem programas de biblioterapia em hospitais da região nordeste e, na região sul do país, atividades de ensino, pesquisa e extensão oferecidas pelo Curso de Biblioteconomia da Universidade de Santa Catarina (UFSC) (LEITE; CALDIN, 2017). Os registros dessas ações justificam a inclusão e a importância da temática dentro do contexto de formação, quer seja acadêmica ou autônoma, direcionada aos profissionais bibliotecários (ASSIS; SANTOS, JESUS, 2019; LEITE; CALDIN, 2017; PINHEIRO; RAMIRES, 2020).

A formação do bibliotecário ocorre nos cursos de graduação e estender-se para a formação continuada para dar conta das diversas demandas da sociedade, uma vez que este profissional atende a um público diversificado em termos de cultura, credo, gênero, raça, idade e situação econômica. Pode-se dizer que “O envolvimento do bibliotecário varia em nível e grau, de acordo com sua formação” e com o espaço de atuação (FERREIRA, 2003, p. 39). No que se refere ao campo da biblioterapia, o profissional bibliotecário poderá desenvolver habilidades específicas ao buscar formação em cursos de especialização em psicopedagogia e psicanálise, cursos de curta duração em biblioterapia ou, até mesmo, desenvolver pesquisas e trabalhos de conclusão de cursos, monografias, dissertações e teses voltados para esta temática. A articulação teórica e prática faz com que os profissionais bibliotecários possam desenvolver habilidades necessárias para construir ações efetivas do campo da biblioterapia para auxiliar os sujeitos diante das questões emocionais.

A prática profissional do bibliotecário para atuar em momentos biblioterápicos pode variar não apenas no que se referem à formação e preparação, mas também na composição de equipes especializadas na elaboração de planos de ações, tais como, atividades para selecionar e preparar textos para a realização de programas com essa finalidade. “Esta formação especializada inclui: treinamento prático de liderança e organização de grupos, aulas teóricas, leituras sobre o assunto, e workshops para reciclagem e avaliação” (FERREIRA, 2003, p. 40). Pode-se afirmar que existem várias modalidades de formação, formais e informais, garantidoras para que a biblioterapia seja trabalhada de maneira adequada no cenário nacional e internacional.

Tendo em vista que a sociedade contemporânea passa por um período de instabilidade econômica, social, política e cultural, podendo causar sofrimento psíquico aos indivíduos e o mal-estar na sociedade, cada vez mais torna-se necessário o desenvolvimento de um trabalho interdisciplinar entre profissionais da saúde, educação, cultura e informação, para lidar com a complexidade dos fenômenos subjetivos e intersubjetivos das relações sociais. Nesse sentido, o bibliotecário pode atuar em clínicas, hospitais, consultórios e em outros espaços de tratamento da saúde mental, em vista de que “[...] a sua prática necessita de conhecimentos do terreno da psicoterapia; portanto essa vivência deveria ser implementada conjuntamente com psicólogos, terapeutas e outros profissionais desse ramo (PINTO, 2005, p. 42).

Conforme a sua finalidade, a biblioterapia pode ser apresentada ou aplicada de duas formas: a biblioterapia clínica e a biblioterapia do desenvolvimento. A biblioterapia clínica, aplicada em hospitais e outros ambientes de promoção da saúde, tem como objetivo focar na mudança de atitude do paciente no que se refere à uma reorientação de comportamento ou uma melhora da situação de sofrimento psíquico por ele vivenciado. Pode ser aplicada por uma equipe multidisciplinar que envolvam psicoterapeutas, médicos e bibliotecários. Por outro lado, tem-se a biblioterapia voltada para o desenvolvimento que é indicada para várias idades podendo ser trabalhada de forma coletiva ou individual, possuindo um caráter preventivo por meio do apoio literário personalizado que possibilita o entendimento sobre a saúde coletiva, podendo ser aplicada em ambientes como escolas e presídios (FERREIRA, 2003; SANTOS; RAMOS; SOUSA, 2017), sem, no entanto, desconsiderar os processos de subjetividade que compreende as singularidades dos indivíduos.

A terapia voltada para o desenvolvimento da leitura crítica tende a auxiliar em processos de busca e recuperação da informação. As equipes que trabalham com a biblioterapia podem ter em sua composição sujeitos das áreas da saúde, informação, educação e cultura (BUENO, 2002; FERREIRA, 2003; PINTO, 2005). Neste sentido, ressalta-se a importância da atuação de profissionais bibliotecários junto com os protagonistas da ação: pacientes hospitalizados, usuários de bibliotecas e educandos de diversas instituições de ensino. Essa característica multiprofissional torna essa prática transdisciplinar, devendo ser entendida por meio de abordagens transgressoras ao ultrapassar as barreiras das disciplinas e as estruturas de poder das instituições de informação e saúde.

A biblioterapia pode ser direcionada ao desenvolvimento humano em processos de formação de leitores ou para o tratamento clínico de patologias que interferem na saúde mental (Figura 1) trabalhada no âmbito da medicina, psicologia e psiquiatria, requerendo o uso de materiais de leitura multimodal, indicados como auxiliar terapêuticos em bibliotecas, escolas, hospitais e clínicas psiquiátricas, que auxiliam na solução de problemas por meio de leitura dirigida (CHAVES; ALBUQUERQUE; LAVOR FILHO, 2020; OUAKNIN, 1996).

 

 

 

 

 

 

Figura 1 – Biblioterapia clínica e voltada para o desenvolvimento do sujeito.

Fonte: Chaves, Albuquerque e Lavor Filho (2020, p. 754).

 

O bibliotecário inserido no contexto de uma equipe multiprofissional assume a função de desatar os nós da alma, da mente e do corpo assim como era feito na Idade Antiga, podendo se apropriar da biblioterapia como uma atividade que possibilita o diálogo entre os participantes e a liberação de emoções reprimidas por meio das palavras e das leituras selecionadas. Para isso, o profissional pode se apropriar dos textos e imagens dos livros impressos, dos contextos imagéticos em movimento dos vídeos, da dinâmica das dramatizações abstraídas de obras teatrais, da criatividade da contação de histórias alimentada pela literatura oral, dentre outros suportes de leituras e atividades específicas, que podem ser recuperados em espaços híbridos (presenciais e virtuais) com a finalidade de provocar o diálogo necessário para a resolução de problemas emocionais e para a cura interior do leitor.

No contexto da crise sanitária, política, social, econômica e cultural, provocada pelo novo coronavírus, convoca para que o profissional bibliotecário possa refletir e trabalhar para minimizar o sofrimento psíquico e a exclusão social e informacional durante a pandemia. Para isso é preciso que ele obtenha habilidades comunicativas e leitoras para propor estratégias biblioterápicas em espaços tempos de informação, saúde, educação e cultura, tais como bibliotecas: escolas, centros de educação infantil, casas de saúde, associação de moradores e outros espaços de produção de leitura e de saúde em períodos de crise. Diante destas possibilidades, ele precisa elaborar planejamentos de programas que compreendam as necessidades dos sujeitos dentro do contexto vivenciado mundialmente por conta do novo coronavírus. Desse modo, o profissional bibliotecário deve contribuir com a oferta de ações que fortaleçam a interação social por meio de atividades que mantenham os sujeitos conectados e acolhidos de maneira que possam resolver ou minimizar problemas emocionais provocados pela crise sanitária e o isolamento social em defesa da promoção da saúde mental (ONU, 2020b). É justamente sobre essas competências e habilidades profissionais o foco da seção a seguir.

4 competências e habilidades comunicacionais para o contexto biblioterápico durante a crise sanitária

Com o passar do tempo a biblioterapia ganhou sentido curativo por intermédio da leitura nas páginas dos livros e nas telas dos equipamentos eletrônicos, tais como, nos computadores e smartphones. Essa atividade pode ser desenvolvida no espaço presencial de uma biblioteca ou no ciberespaço por meio do acesso às redes digitais (LÉVY, 2010; OUAKNIN, 2016), espaços nos quais o processo curativo pode ser alcançado “A partir de textos ou imagens, [pelos quais] a palavra brota de modo espontâneo, os ouvintes demonstram indignação, fazem associações e começam [...] a relembrar sua própria vida” (PETIT, 2009, p. 45, grifo do autor).

O ciberespaço é responsável pela comunicação síncrona e assíncrona que demanda domínio para o uso das tecnologias de informação e comunicação principalmente durante a crise sanitária, requerendo compreender que os bibliotecários que atuam com a abordagem clínica e voltada para o desenvolvimento, possam por meio dessa ferramenta fortalecer a saúde mental do próprio profissional e do público por ele atendido. Essa atividade biblioterápica tende auxiliá-lo no cuidado de si mesmo e do outro como forma de evitar o adoecimento no cenário pandêmico. Para isso, exige-se o desenvolvimento de competências e habilidades para a sua aplicação.

Para além das habilidades de leitura (hiper)textual necessárias ao sujeito contemporâneo, principalmente no ciberespaço, solicita-se a aquisição de habilidades de comunicação que potencializem a criação de um ambiente acolhedor, que proporcione um diálogo aberto sobre a situação vivida durante a pandemia. Essa forma de comunicação clara e objetiva torna-se favorável para lidar com o fenômeno do sofrimento psíquico dos indivíduos presentes (LÉVY, 2010; LIMA; SIMÕES; FINAMOR; GUNTHER, 2019; OMS; OPAS, 2020).

De maneira geral, as competências compreendem as dimensões dos conhecimentos, das habilidades e das atitudes, sendo esta última, direcionada para a mobilização de ações que resultam na solução de problemas ou na redução da carga de sofrimento envolvido. Enquanto os conhecimentos são acumulados por meio de experiências e estudos que culminam em aprendizagens ao longo da vida, as habilidades são responsáveis por transformar conhecimentos em ações constituindo-se como um “saber fazer” solicitado, no caso específico desta pesquisa, para um direcionamento da prática biblioterápica no ambiente da biblioteca tanto quanto em outros espaços que exijam uma atuação bibliotecária diferenciada, como por exemplo, no ciberespaço (espaço virtual) (GERLIN, 2020).

A competência leitora, nesse sentido, torna-se necessária para a apropriação crítica dos novos e antigos contextos textuais, imagéticos e sonoros durante a prática biblioterápica, possibilitando que as leituras necessárias ao processo de cura sejam adquiridas e desenvolvidas (GASQUE; SILVESTRE, 2017; OUAKNIN, 1996; SOLÉ, 2012). Essa competência é constituída por conhecimentos adquiridos previamente e durante o processo dialógico. As habilidades, neste sentido, também culminam da prática por meio das ações de integração e a intervenção social nos momentos de diálogo sobre leituras críticas nas diversas modalidades de leituras. Desse modo, a competência leitora[4] compreende em um conjunto de habilidades necessárias à apropriação de textos multimodais em espaços híbridos, de maneira autônoma, por meio de um conjunto de estratégias que permitem a compreensão de um contexto de leitura dependendo das necessidades sociais dos indivíduos que participarão das atividades (GASQUE; SILVESTRE, 2017; PETIT, 2009; SOLÉ, 2012).

A prática da leitura biblioterápica envolve a “[...] construção de sentidos sobre o que está lendo, podendo este emocionar-se, tanto com a leitura de livros, como escutando uma música ou assistindo a um filme” (PINTO, 2005, p. 41). Desse modo, em se tratando da competência leitora necessária ao momento da leitura terapêutica, é importante considerar as seguintes estratégias: dotar de finalidade pessoal a leitura e planejar a melhor maneira de ler; interferir, interpretar e integrar a nova informação com o conhecimento prévio, buscando a compreensão durante a leitura, a elaboração e sintetização da informação sempre que for necessária (SOLÉ, 2012).

A biblioterapia por si só já possibilita a criação de espaços de abertura do diálogo viabilizados por diferentes linguagens, que são essenciais para o processo de comunicação. Diante dessa possibilidade, a atividade da leitura terapêutica tende a se tornar potente em momentos de crise, requerendo dos profissionais um conjunto de habilidades (OUAKNIN, 2016; PETIT, 2009). Portanto, no campo da atuação bibliotecária “Destaca-se também a necessidade da competência comunicativa, [contemplando uma certa] habilidade que pode ser aprendida e aperfeiçoada. Esta disposição para argumentação e discussão é fundamental para o entendimento, mas não apenas para escolhas racionais” (SILVA; FERNANDES; LIMA, 2013, p. 130).

A competência comunicativa seria responsável por romper com a visão de uma biblioteconomia técnica e pouco direcionada para causas sociais (LIMA; SIMÕES; FINAMOR; GUNTHER, 2019; SILVA; FERNANDES; LIMA, 2013), assim como, também, para fortalecer a comunicação entre bibliotecários, usuários, médicos, agentes comunitários e outros sujeitos que, juntos, podem desenvolver habilidades comunicativas nos momentos de crise sanitária e poder atender as necessidades dos indivíduos que estejam em situação de vulnerabilidade.

Outra questão latente é que as “Bibliotecas enquanto instituições sociais devem acompanhar e inovar em vista destas modificações sociais, econômicas e tecnológicas” (SILVA; FERNANDES; LIMA, 2013, p. 121), e por meio da biblioterapia é possível organizar um conjunto de estratégias baseadas em leituras interpretativas (hermenêuticas) auxiliando na abertura do diálogo ocasionado pelo processo comunicativo, cuja origem baseia-se no ato de narrar e dialogar com o outro e consigo mesmo. “De fato, é sempre a nossa palavra que constitui o movimento da nossa vida. Porém, com frequência acontece que a palavra do outro dinamiza nosso universo psíquico e nos transmite emoções que nós também sentimos” (OUAKNIN, 2016, p. 23, tradução do autor).

Os momentos biblioterápicos exigem o intercambiamento das habilidades comunicativa e de leitura, na medida que o novo cenário de comunicação requer uma competência leitora que compreende a teoria e a prática (práxis) transformadora (FREIRE, 1996) e, ao mesmo tempo, a aquisição de técnicas de análise sobre o conteúdo de recursos como livros, filmes e músicas de acordo com a idade e as necessidades dos participantes. De certo modo, isso demanda que o profissional tenha conhecimento dos problemas e/ou necessidades dos sujeitos por meio da identificação com os personagens, podendo ocasionar a projeção, a liberação das emoções e o autoconhecimento por meio de uma competência leitora que envolve processos efetivos de comunicação.

 

 

Figura 2 – Competências e habilidades comunicativas e de leituras

Fonte: Elaboração própria (2021).

 

Considerando que as habilidades são essenciais para o desenvolvimento de competências de comunicação e de leitora (Figura 2), apresentam-se um esquema metodológico contendo elementos requeridos para a mobilização de estratégias necessárias à saúde mental em contextos de crise humana e sanitária:

         Competência leitora: habilidades direcionadas para o uso de suportes informativos, literários, dentre outros; disponibilização de narrativas, imagens e/ou sons; leitura crítica e reflexiva diante do uso da leitura multimodal e (hiper)textual;

         Competência comunicativa: habilidades voltadas para a interação verbal e não verbal; escuta que precede o diálogo ao estabelecer uma situação de ajuda; uso de linguagens que traduzam sentimentos nos momentos de crise.

O esquema é direcionado ao desenvolvimento de habilidades de leitura que compreendem o uso de suportes informativos, literários, dentre outras modalidades e linguagens multimodais, assim como para a capacidade de selecionar e disponibilizar narrativas, imagens e/ou sons que possam evocar diálogos terapêuticos e, não menos importante, para uma leitura crítica e reflexiva diante do uso da leitura (hiper)textual no ciberespaço (GASQUE; SILVESTRE, 2017;  GERLIN, 2020; LÉVY, 2010; OUAKNIN, 2016; PETIT, 2009; SOLÉ, 2012).

No que se refere à competência comunicativa, compreende-se a urgência da aquisição de habilidades comunicativas voltadas para a interação verbal e não verbal durante os momentos biblioterapêuticos, importantes para a experimentação de uma escuta que precede o diálogo, visando o compartilhamento de experiências e, posteriormente, para o estabelecimento de uma situação de ajuda  que, diante do uso de linguagens, possa traduzir, por exemplo, os sentimentos de medo e de ansiedade e poder conduzir à resolução de problemas ou minimizar o sofrimento por meio da catarse (LIMA; SIMÕES; FINAMOR; GUNTHER, 2019; SILVA; FERNANDES; LIMA, 2013; OUAKNIN, 1996).

Devido a temática ser pouco explorada pela literatura científica, decidiu-se recorrer aos documentos produzidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), Organização Mundial da Saúde (OMS) e Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), para (re)pensar em um conjunto de habilidades comunicativas para o contexto biblioterápico que exige, igualmente, uma competência leitora que possa dar conta dos diálogos necessários a essa prática, de forma que torne possível compreender criticamente (con)textos multimodais e hipertextuais que surgem em um cenário pandêmico.

 

5 COMPETÊNCIAS LEITORA E COMUNICATIVA: PRINCÍPIOS E HABILIDADES PARA A SAÚDE MENTAL EM MOMENTOS BIBLIOTERÁPICOS

O processo de comunicação faz parte do desenvolvimento da humanidade e, neste sentido, pode-se dizer que o sujeito contemporâneo carrega consigo uma necessidade latente de se comunicar (intra e interpessoalmente). Quando ele se depara com as tristezas e outros sentimentos, necessita se conectar com palavras oralizadas, escritas, ilustradas e/ou sinalizadas que possam orientá-lo no enfrentamento da doença, do sofrimento psíquico e de outras situações críticas vivenciadas no cenário pandêmico. Embora a crise sanitária esteja relacionada com a saúde física da população mundial, a saúde mental deve se constituir como uma preocupação que poderá atingir futuras gerações conforme os índices apontados na publicação “United nations Policy Brief: Covid-19 and the need for action on mental health” (ONU, 2020b).

O “Guia de intervenção humanitária” (OMS, OPAS, 2020) é direcionado aos gestores, comunidades e sujeitos apontados como responsáveis por gerir medidas necessárias para combater o sofrimento psíquico e, para isso, apresenta as seguintes recomendações: aplicação de abordagens sociais para a promoção, proteção e cuidado da saúde mental (i); oferecimento de atendimento de emergência e apoio psicossocial voltado para a saúde mental (ii) e promoção de ações de suporte para o atendimento dessas demandas por meio de financiamento e estratégias direcionadas aos cuidados com a saúde mental, neurológica e transtornos devido ao uso de substâncias prejudiciais (iii) (ONU, 2020b).

Esse guia é direcionado aos serviços de atenção à saúde não especializados podendo ser adaptados para emergências humanitárias, auxiliando aos profissionais da área de saúde e de outras áreas de suporte ao atendimento das vítimas do luto, sofrimento agudo e problemas de saúde mental como transtornos depressivo e estresse pós-traumático. Para isso, apresenta um mapeamento da pré-existência de transtornos mentais: estresse agudo (AGU); luto (LUT); transtorno depressivo moderado e grave (DEP); transtorno de estresse pós-traumático (TEPT); psicose (PSI); epilepsia e crises epilépticas (EPI); deficiência intelectual (DI); acometimentos devido ao uso prejudicial de álcool e outras drogas (SUB) e outros problemas importantes de saúde mental (OUT) (OMS, OPAS, 2020).

Ao apresentar princípios de comunicação, avaliação e redução do sofrimento psíquico e outras psicopatologias, pode se transformar em estratégias para o alcance das habilidades de comunicação e o auxílio de cuidados para adultos, adolescentes e crianças em situação de crise (OMS, OPAS, 2020). O princípio da comunicação (Figura 3), em específico, é direcionado às pessoas em contextos de emergência humanitária que, no caso desta pesquisa, possibilita a reflexão do trabalho necessário para o desenvolvimento humano e, não necessariamente, para o tratamento das doenças mentais, neurológicas e devido ao uso de substâncias (MNS).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 3 – Síntese dos princípios de comunicação para o tratamento das doenças mentais, neurológicas e devido ao uso de substâncias (MNS)

Fonte: Adaptado da OMS e OPAS (2020).

 

 

Com a finalidade de atender as demandas das leituras terapêuticas durante a crise sanitária, o bibliotecário poderá atuar numa perspectiva interdisciplinar ao trabalhar com esses princípios ao se pautar no contexto de uma ação comunicativa. Por lidar com um fenômeno muito complexo este profissional precisa articular suas atividades com os outros profissionais, tendo em vista que jamais poderá atender a essa demanda de maneira isolada.

Na atual conjuntura que exige a exploração do trabalho remoto e do isolamento social, mais do nunca, o bibliotecário precisa de orientação para cuidar da própria saúde mental, de forma que possa desenvolver o seu papel como cidadão e profissional da informação. Então, é preciso que nos processos terapêuticos sejam considerados, em meio aos processos de subjetivação (DUNKER, 2004), as particularidades, individualidades e necessidades desses trabalhadores, que se encontram conectados em redes digitais no ciberespaço constituído, para facilitar a conexão profissional, cultural e social. Além disso, esses profissionais devem lutar para que o ciberespaço não seja um espaço excludente destinado apenas para as minorias sociais (LÉVY, 2010).

Levando em consideração que a biblioterapia fornece elementos para a preservação da saúde mental, a adaptação dos “princípios da comunicação” (OMS, OPAS, 2020) auxilia no planejamento de atividades terapêuticas por meio da indicação de leituras no ambiente das bibliotecas e no ciberespaço e, consequentemente, contribui para a aquisição das habilidades necessárias para: A criação de ambiente de comunicação aberta em momentos biblioterápicos (i); O envolvimento nas atividades propostas e contato com leituras multimodais e hipertextuais (ii); A capacidade de escuta perante relatos de experiências difíceis em atendimentos individuais e/ou coletivos (iii); A observação das necessidades do usuário de maneira que se possa indicar acompanhamento clínico caso seja necessário (iv).

A criação de um ambiente de facilitação de comunicação aberta (i) requer como estratégia o estabelecimento de diálogos com usuários para indicação das leituras biblioterápicas. Para isso, o bibliotecário deverá gerenciar a organização dos ambientes adequados para os encontros privados e coletivos, dependendo do objetivo estabelecido para o diálogo. O processo de comunicação individual requer o acolhimento e um posicionamento do corpo do profissional na mesma altura dos olhos daqueles a quem o diálogo se destina, bem como uma apresentação oral receptiva e cumprimentos apropriados e direcionados ao(s) presente(s) (OMS, OPAS, 2020).

Com base no levantamento histórico apresentado na seção anterior, percebe-se que o bibliotecário ao longo do tempo contribuiu e ainda poderá contribuir com a saúde mental dos seus usuários e demais membros da sociedade ao fazer uso das modalidades literárias e de outras que podem ser utilizadas nos momentos de biblioterapia. Assim sendo, o leitor, alfabetizado ou não, poderá estabelecer contato com variadas linguagens contidas em textos literários, lúdicos, informativos, entre outras modalidades que auxiliam no enfrentamento dos problemas emocionais que precisam ser solucionados ou amenizados individualmente e/ou coletivamente. Em situação de crise, a leitura assume uma condição privilegiada para a recuperação dos laços sociais e para o compartilhamento da experiência necessária ao processo terapêutico e, para que o diálogo possa efetivamente acontecer, será preciso selecionar materiais específicos para fazer fluir a comunicação ao contar com o uso de suportes alimentados com conteúdo multimodal: leituras literárias textuais, notícias em vídeos, narrativas em podcasts etc.

Considerando que a Biblioterapia para o desenvolvimento possibilita um atendimento preventivo nas bibliotecas, por meio da indicação de leituras apropriadas, pode-se contribuir, também, com a saúde mental dos indivíduos e, em caso de situações mais delicada, requeiram que o usuário seja indicado a um atendimento clínico específico, quando a situação extrapola no âmbito institucional (FERREIRA, 2003; SANTOS; RAMOS; SOUSA, 2017). No contexto biblioterápico deve-se proceder a um contato baseado em perguntas e respostas, de forma que se possa negociar que o diálogo estabelecido no processo de comunicação e que os resultados sejam divulgados apenas com autorização dos interessados. Nesse sentido, “A competência comunicativa é mais do que a mera competência linguística, de representar e expressar. Ela inclui a capacidade de problematizar, de reconstruir racionalmente, de aprender. A aprendizagem tem dimensões subjetivas e intersubjetivas” (LIMA; SIMÕES; FINAMOR; GUNTHER, 2019, p. 225).

Para que uma leitura terapêutica seja considerada como biblioterápica deve haver um encontro dialógico entre a narrativa, texto e/ou imagem já que “As noções-chave da biblioterapia são ‘abertura’ e ‘diálogo’” (OUAKNIN, 1996, p. 125). O exposto permite refletir acerca do uso de diversos formatos de leitura para resolver problemas, necessitando, portanto, que o bibliotecário obtenha competência para auxiliar na compreensão do conteúdo ao estabelecer contato com diferentes fontes (SÓLE, 2012). Para isso, as habilidades de leitura crítica devem ser aliadas à capacidade de interação para que o diálogo efetivamente aconteça, já que “A leitura biblioterapêutica é uma operação de disseminação que contempla a vida, o movimento e o tempo” (OUAKNIN, 2016, p. 29, tradução do autor).

O envolvimento nas atividades propostas do sujeito em contado com leituras multimodais e hipertextuais (ii), se torna importante devido considerar o público atendido como protagonista, ou seja, como uma pessoa que faz parte do momento biblioterápico de fato. Solicita habilidades na utilização de linguagem clara e simples, evitando termos técnicos, possibilitando, desse modo, a inclusão de um público composto por crianças e adolescentes (lembrando que nessa idade não podem ser atendidas desacompanhadas), jovens, adultos e idosos nas discussões (OMS, OPAS, 2020). “Entretanto, é preciso que a seleção para efeito da Biblioterapia, não se restrinja às características literárias e de conteúdo das obras. É preciso também levar em conta os aspectos psicoeducacionais dos indivíduos envolvidos” (FERREIRA, 2003, p. 42).

Em vista de que o estresse, o medo, o luto e outros sentimentos ocasionados pelos momentos de crise podem influenciar no processamento de diálogo durante os momentos de leituras, requer que o profissional trabalhe com calma e no tempo apropriado de cada sujeito, sendo, igualmente, necessário exercitar a capacidade de escuta das experiências difíceis em atendimentos individuais e/ou coletivos (iii) (OMS, OPAS, 2020). Para isso, é importante planejar atividades para o desenvolvimento das habilidades de uma escuta sensível sem interrupções, pressões e situações desconfortáveis que tornem visíveis o respeito e, ao mesmo tempo, o sigilo necessário no processo de comunicação.

A habilidade de escuta e o conhecimento das estratégias de leituras multimodais implicam em saber que “Toda pessoa ao ler constrói um texto paralelo intimamente relacionado ao texto que está sendo lido” (FERREIRA, 2003, p. 41). Desse modo, também se deve conceber a possibilidade de incluir, no processo de diálogo, textos e contextos (re)criados pelos leitores com base nas suas experiências e no conhecimento adquirido, podendo conter referências pessoais e interpretações baseadas nas suas experiências de mundo (FREIRE, 1996).

A observação do comportamento dos participantes deve acontecer de maneira que se possa trabalhar com a identificação da necessidade ou não de um atendimento clínico (iv), sendo que perante o reconhecimento de uma crise emocional, por exemplo, o participante deve ser acolhido sem julgamentos e encaminhado para outros serviços, porém, não sem antes dialogar e prepará-lo para os próximos passos (OMS, OPAS, 2020). Caso seja necessário deve-se procurar o auxílio de outros profissionais que devem ser envolvidos nos processos de leituras e comunicativos (terapeutas, intérpretes, etc.), sendo preciso instruí-los a manter sigilo em decorrência do tipo de atendimento diferenciado que é oferecido pela biblioteca pública, escolar e/ou universitária.

A possibilidade de colocar em questão os princípios de comunicação do “Guia de intervenção humanitária” (OMS, OPAS, 2020), em um momento de crise sanitária que afeta a saúde mental dos sujeitos, tende a conduzir o bibliotecário à percepção da necessidade de desenvolver uma competência baseada na escuta e no diálogo. Adquirir habilidade comunicativa torna-se um fator imprescindível para o trabalho com a biblioterapia em momentos de crise ou não, assim como deve-se alcançar uma competência leitora necessária ao uso e à compreensão de recursos de leituras multimodais e hipertextuais. Desse modo, o trabalho com a leitura em programas que envolvem diferentes tipos de bibliotecas,

[...] supõe uma aprendizagem ampla, multidimensional, que requer a mobilização de capacidades cognitivas e inclusão social. É um esforço para todos, docentes, discentes, [bibliotecários, psicólogos, médicos, agentes de saúde] porém é um esforço que vale a pena, pois dialogamos sobre uma aprendizagem mais funcional e capacitadora que pode fazer uma pessoa (SOLÉ, 2012, p. 59, tradução do autor).

Compreende-se que os programas de biblioterapia devem envolver estratégias de leituras que desenvolvam habilidades de compreensão e conhecimentos sobre aspectos cognitivos, racionais, intelectuais e emotivos, para que se possa obter transformações sociais por meio de uma práxis transformadora (FERREIRA, 2003; FREIRE, 1996). Portanto, o planejamento e a implantação de ações que demandam a aplicação de diferentes modalidades de leituras através do diálogo biblioterapêutico, devem prever a adoção de técnicas de mudança de comportamento através do autoconhecimento e de uma ação comunicativa.

Não se pode perder de vista a necessidade de também refletir que “A extrema pobreza, a angústia do dia seguinte, os maus-tratos, matam o olhar e impedem, se nenhuma oportunidade for apresentada por meio de um encontro, que se imagine a menor alternativa” (PETIT, 2009). Devido aos motivos elencados, como o medo pelo risco eminente de infecção e morte, distanciamento social, problemas econômicos, aumento de violência doméstica, aumento da carga horária de trabalho, acesso às notícias falsas e rumores sobre a doença (OMS; OPAS, 2020; ONU, 2020b), depreende-se que o cuidado com a saúde mental é importante para que os indivíduos tomem os cuidados necessários ao combate da Covid-19 e possam lidar com esse momento de crise sanitária de maneira menos dolorosa.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A biblioterapia é uma prática milenar fortalecida na contemporaneidade pela utilização de recursos de leituras como livros, fotografias e vídeos armazenados em suportes informativos, literários, lúdicos, dentre outras modalidades disponibilizadas no espaço presencial e no ciberespaço. Para refletir sobre a sua utilização no cenário da crise sanitária, desencadeada mundialmente em decorrência da Covid-19, esta pesquisa permitiu identificar como a biblioterapia pode ser utilizada pelos profissionais bibliotecários como estratégia terapêutica e comunicativa durante a pandemia.

Os resultados do processo de investigação apontam para uma atuação bibliotecária que compreende a utilização e os seus benefícios da biblioterapia por meio do desenvolvimento de habilidades comunicativas e de leitura alimentados pela linguagem multimodal (textual, sonora, imagética etc.). Por conseguinte, verificou-se que houve um fortalecimento do uso desse recurso e da atuação bibliotecária em hospitais e outras instituições no início do século XX, assim como, na atualidade, destaca-se a necessidade de assumir abordagens inter e transdisciplinares para planejar e implantar ações e programas condizentes com as demandas da sociedade.

Por meio desta pesquisa identificou-se que essa terapia é direcionada aos sujeitos de todas as idades e condições sociais, podendo ser desenvolvida não apenas em hospitais e clínicas, mas também em bibliotecas, comunidades, escolas, dentre outros espaços de informação, educação e cultura. Comprovou-se, ainda, a importância da contribuição da textualidade e das novas tecnologias para o desenvolvimento da biblioterapia nos espaços presenciais e no ciberespaço, explorada por meio da utilização de livros e recursos multimodais e hipertextuais.

Com a proposta de dialogar sobre a sua utilização nas bibliotecas e noutros espaços de informação e saúde, compreendeu-se que a biblioterapia aparece como uma estratégia de enfrentamento do medo, da angústia e da ansiedade em decorrência da pandemia gerada pela Covid-19. Na segunda etapa da pesquisa, identificou-se essa terapia como uma potente estratégia no enfrentamento da crise sanitária vivenciada na segunda década do século XXI, de forma que possa fortalecer a saúde mental do próprio profissional bibliotecário e do público por ele atendido, uma vez que possa auxiliá-lo no cuidado de si mesmo e do outro de maneira preventiva ao evitar o sofrimento psíquico no cenário pandêmico.

Os benefícios proporcionados pela biblioterapia para o desenvolvimento humano,  tornam-se uma estratégia para a criação de ações e programas com base nessa terapia durante o momento de crise, fornece apoio no campo de atuação clínica (sendo que esse atendimento deverá contar com a intervenção de profissionais da saúde) e institucional, percebe-se que o bibliotecário deva adquirir competências em leitura e em comunicação que possibilitem o estabelecimento de diálogos por meio da seleção de recursos bibliográficos e multimodais e/ou pela aplicação de estratégias durante os diálogos terapêuticos.

Considerando a importância da biblioterapia durante a pandemia, apresentou-se um esquema metodológico adaptado das orientações publicadas no “Guia de intervenção humanitária” com a finalidade de propor estratégias para que o profissional bibliotecário possa contribuir com o desenvolvimento das habilidades de comunicação e aprimorar a competência leitora necessária para trabalhar com a saúde mental, tanto no espaço tempo da biblioteca, quanto em outros ambientes que exijam uma atuação diferenciada por parte desse profissional.

Diante do desenvolvimento desta pesquisa, tornou-se possível identificar competências comunicativas e leitoras voltadas para o contexto biblioterápico de forma que possam dar conta dos diálogos necessários a essa prática, possibilitando compreender criticamente (con)textos de leituras multimodais fortalecidas no ciberespaço durante o momento de crise sanitária. Considerou-se, portanto, a urgência do desenvolvimento de habilidades de leitura para o uso de suportes com conteúdos informativos, literários, dentre outras modalidades que possam evocar leituras terapêuticas. Assim como, também, torna-se necessário a aquisição de habilidades comunicativas que compreendam a interação verbal e não verbal, a escuta ao estabelecer uma situação de ajuda e o uso de linguagens que traduzam os sentimentos nos momentos de crise.

 

 

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[1] Doutora em Ciência da Informação pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Educação e bacharel em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professora Adjunta Departamento de Biblioteconomia e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI) do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE) da UFES.

[2] Graduação em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestrado em Gestão de Unidades de Informação pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Pós-graduado (lato sensu) em Ciência da Informação (Biblioteca Escolar) pelo Centro de Ensino Superior Anísio Teixeira (2008). Formação em Psicanálise Clínica pela Associação Brasileira de Psicanálise Clínica (ABPC) e Especialização em Filosofia e Psicanálise pela NEAD/UFES.

[3] Estudo realizado no contexto de um grupo de pesquisa certificado pelo CNPq e de projetos de pesquisas registrados em universidades federais, contribuindo com a estruturação de momentos formativos durante a pandemia organizados para bibliotecários e outros profissionais que atuam nas áreas da informação, educação e saúde.

[4] Refere-se a uma competência atravessada não apenas pela prática da alfabetização (aquisição do código da escrita) mas também pelo letramento social, processo no qual a leitura do mundo precede a leitura da palavra (FREIRE, 1996; GASQUE; SILVESTRE, 2017).