SAÚDE MENTAL E REFORMA PSIQUIÁTRICA NOS SELOS POSTAIS BRASILEIROS
Diego Andres Salcedo [1]
Universidade Federal de Pernambuco
salcedo.da@gmail.com
Eduarda de Melo [2]
Universidade Federal de Pernambuco
dudahmelo@hotmail.com
______________________________
Resumo
O artigo analisa a forma com a qual o selo postal contribui para o discurso sobre a saúde mental e a reforma psiquiátrica brasileira. Considera o selo postal como documento memorial e informacional. Foi um estudo exploratório e com procedimento metodológico bibliográfico e documental. O Catálogo de Selos do Brasil e a página eletrônica dos Correios do Brasil foram utilizados como recursos informacionais para identificação do corpus. Esse corpus é composto por 10 selos postais comemorativos emitidos pelos Correios do Brasil entre 1843 e 2020. Outros selos foram utilizados como ancoragem textual. O procedimento de análise possibilitou correlacionar uma regularidade do discurso em saúde com o contexto histórico brasileiro e os selos postais. Conclui-se que os selos postais permitem uma aproximação de certa perspectiva sobre a saúde mental e a reforma psiquiátrica brasileira. Indica que utilizar o selo postal para finalidades acadêmico-científicas tem um positivo apelo didático e de preservação e difusão de narrativas de lembranças e esquecimentos.
Palavras-chave: Brasil. Memória. Reforma Psiquiátrica. Selo Postal. Saúde Mental.
MENTAL HEALTH AND PSYCHIATRIC REFORM IN BRAZILIAN POSTAGE STAMPS
Abstract
The article analyzes the way in which the postage stamp contributes to the discourse on mental health and Brazilian psychiatric reform. It considers the postage stamp as a memorial and informational document. It was an exploratory study with a bibliographic and documentary methodological procedure. The Stamp Catalog of Brazil and the Correios do Brazil website were used as an informational resource to identify the corpus. This corpus is composed of 10 commemorative postage stamps issued by Correios do Brasil between 1843 and 2020. Other stamps were used as textual anchors. The analysis procedure made it possible to correlate a regularity of the health discourse with the Brazilian historical context and postage stamps. It concludes that postage stamps allow an approximation of a certain perspective on mental health and Brazilian psychiatric reform. It indicates that using the postage stamp for academic-scientific purposes has a positive didactic appeal and the preservation and dissemination of narratives of memories and forgetfulness.
Keywords: Brazil. Memory. Psychiatric Reform. Postage Stamp. Mental Health.
1 INTRODUÇÃO
A construção dos discursos verbo-visuais da saúde mental e da reforma psiquiátrica brasileiras pode ser realizada por meio de um grande número de artefatos, tecnologias, instituições, eventos sociais, práticas etc, seja do ponto de vista documental seja sob uma perspectiva de memória, por exemplo, a documentação institucional pode ser caracterizada como dos saberes arquivísticas.
Outras espécies documentais podem ser consideradas de ordem museológica (objetos colecionáveis). Um terceiro grupo de documentos encontra-se em bibliotecas, centros de documentação, institutos de pesquisa etc, e seriam tanto de ordem científica quanto institucional, por vezes de segundo e terceiro tipos, se consideradas as classificações de fontes informacionais tradicionais. De fato, é perceptível a complexidade que constitui, ao mesmo tempo, o regime informacional, documental e memorial do campo da saúde no país.
Vale apontar, ainda, que a representação da saúde mental e da reforma psiquiátrica é composta tanto pela práxis em saúde, propriamente dita, quanto pelos modos com que os agentes externos a essa prática, como o Estado, constroem uma imagem da Saúde. Ao considerar este enfoque é criada a condição para que o selo postal seja utilizado no meio acadêmico-científico como documento de análise verbo-visual das possibilidades de visibilidade, visualidade e reconhecimento da saúde.
Nesse sentido, foi realizada uma pesquisa em meados de 2010 sobre como a temática psiquiátrica representada em alguns países anglo-saxônicos emitidos entre 2002 e 2009. Essa pesquisa concluiu que os selos postais foram utilizados para rememorar pessoas ilustres do campo da saúde mental e eventos como o Congresso Mundial de Psiquiatria no mundo, num claro papel social de campanhas anti-estigma dentro da Psiquiatria (RODRIGO; MAJOOR, 2012).
Figura 1 – 4° Congresso Mundial de Psiquiatria |
|
Fonte: Coleção particular de Salcedo |
A escolha do selo postal está baseada no fato de que os estudos e análises acerca da representação em saúde feitas em língua portuguesa tem sido comumente realizados com base em suportes tradicionais como: livros, artigos científicos, anais de eventos, relatórios técnicos, prontuários, matérias de jornal, estudos sobre autorrepresentações (entendimentos outorgados pelos agentes do próprio campo), fotografias, histórias orais (entrevistas), documentários e, com crescente frequência na última década, as tecnologias digitais conectadas em rede.
O objetivo do estudo foi analisar o selo postal na sua condição discursiva sobre a saúde mental e a reforma psiquiátrica brasileiras. Para isso, partiu-se do pressuposto de que o selo postal é um documento com dimensões de análise tanto de estudos de memória quanto de estudos informacionais, em que pese a possibilidade de outros modos de vê-lo que não cabe neste escrito (SALCEDO e SANTANA, 2010; SALCEDO e BRONSZTEIN, 2012; SALCEDO 2014). Considerado esse objetivo a pesquisa foi exploratória e, quanto aos procedimentos metodológicos, foi bibliográfica e documental.
A revisão bibliográfica considerou artigos científicos, livros especializados das áreas de Saúde, dos estudos em Memória e da Filatelia (ciência de estudo do selo postal e seus documentos derivados), tanto por meio da Base de Dados Referenciais de Artigos de Periódicos em Ciência da Informação (BRAPCI), quanto pela Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da CAPES. Ainda, a biblioteca que constitui um dos mais completos acervos bibliográficos da filatelia brasileira, sediada em cidade do Recife, também foi consultada com o auxílio da equipe que integra o Grupo de Pesquisa METIC (ex-Imago e Humanidades Digitais).
Do ponto de vista bibliográfico e documental foram utilizados como recursos informacionais para identificação do corpus tanto o Catálogo de Selos do Brasil na sua edição impressa de 2019 e na sua versão eletrônica de 2021, quanto a página eletrônica dos Correios do Brasil. O total de selos postais do tipo comemorativo emitidos pelos Correios do Brasil e, conforme a contagem do Catálogo, foi de 4030. O levantamento, a partir dessa população resultou num corpus de 10 selos postais comemorativos emitidos entre 1843 e 2020. Outros selos foram utilizados como ancoragem no texto.
O Catálogo de Selos do Brasil (CSB), produzido pela editora Rolf Harald Meyer (RHM), é a obra de referência que representa a produção filatélica com propriedade, legitimidade e credibilidade no cenário nacional. Publicada anualmente elenca todos os documentos filatélicos produzidos pelos Correios do Brasil desde a emissão da primeira trinca dos Olhos-de-Boi, em 1843. O CSB há mais de 70 anos reúne dados e informações tanto sob uma perspectiva econômica quanto descritiva em relação à dimensão da organização cronológica das emissões, da sua representação do conhecimento, mas, também informações históricas, sociais e culturais por meio de toda a documentação representada no catálogo (FEITOSA; SALCEDO, 2018, p. 6654).
O procedimento de análise possibilitou correlacionar uma regularidade do discurso em saúde com o contexto histórico brasileiro e os selos postais. Parte do desfio deste estudo foi cobrir uma lacuna literatura científica nacional em que o selo postal seja articulado com estudos da saúde em geral.
Figura 2 – Centenário da Fiocruz |
|
Fonte: Coleção particular de Salcedo |
2 SELOS POSTAIS: interfaces de informações científicas
A compreensão das formas de comunicação do fazer ciência é condição inerente à formação de redes sociais e, simultaneamente, um desafio à própria ciência, pois se espera responsabilidade perante a sociedade. Um diagnóstico das estratégias de comunicação para o público leigo é essencial para a melhoria do processo. O resultado esperado é conferir maior visibilidade à ciência produzida no país, com o intuito de possibilitar a apropriação de conhecimento pelos diferentes sujeitos. Isso resultará num processo de retroalimentação dos fluxos de informação científica entre quem faz e quem não faz ciência.
São inúmeras as alternativas possíveis para a divulgação da produção gerada pelos cientistas. Dependendo das que forem utilizadas, o conhecimento gerado será mais ou menos acessível à comunidade. Toda essa multiplicidade de documentação faz parte do sistema de comunicação científica, que compreende canais formais e informais utilizados pelos cientistas e pelas instituições, tanto para comunicarem os processos do fazer científico, como os resultados das pesquisas ao público leigo e também a outros pesquisadores.
Figura 3 – Saúde e Preservação da Vida |
|
Fonte: Coleção particular de Salcedo |
Nesse sistema, os cientistas são produtores e consumidores de informação científica. O conceito de visibilidade da ciência, independentemente do suporte ao qual sua imagem esteja vinculada, pode ser considerado um indicador para aferir o grau de exposição da ciência ou do fluxo de informação científica no âmbito da comunicação científica. Nesse sentido, as imagens de cientificidade contidas nos selos postais comemorativos brasileiros, emitidos no século XX podem contribuir para dar visibilidade à ciência.
É imperativo e relevante que todo e qualquer suporte disponível seja utilizado para contribuir, cada qual à sua forma, no desenvolvimento de modelos de divulgação científica. Dentre os diversos e distintos suportes que podem servir para esse propósito está a documentação filatélica, que inclui o selo postal do tipo comemorativo. Por um lado, afirma Altman (1991, p. 4): “stamps have become useful ideological and cultural artifacts, and a means for governments to […] promote certain images at home and abroad”.
Por outro lado, mas corroborando com esse autor, o pequeno pedaço de papel elimina distâncias, preserva na forma de texto e imagem (elementos verbovisuais), com criatividade, perspectivas de narrativas historiográficas da humanidade. Resgata, pois, na forma de documento temático, as pessoas e suas feituras, efemérides, eventos, símbolos (locais, nacionais e internacionais), celebrações, costumes, tradições, processos e o tempo (memória), de forma particular e geral.
Na função de agente não-humano, o selo postal conecta indivíduos com os seus processos históricos e os seus diversos e distintos conhecimentos. Assim, Salcedo (2008, p. 5) sugere que as informações “textuais e pictóricas (verbo-visuais)” registradas nesses pequenos artefatos culturais, constituem-se discursos de conteúdo endógeno e exógeno, que passam despercebidos ao leitor comum que, por sua vez, apenas os identificam como taxas devidas aos Correios para envio de missivas postais.
Propõe-se que o selo postal, “documento produzido pelo Estado”, como confirma Salcedo (2006, p. 1), seja considerado um meio que pode ser aliado ao processo de difusão e, portanto, à socialização da informação científica, no caso deste estudo que seja, então, no campo da saúde, particularmente, da saúde mental e, em paralelo, na sua relação com a reforma psiquiátrica brasileira.
Para tanto, tomamos a imagem como objeto de estrutura significante, que viabiliza a construção de sentidos. Entendemos que a interface imagética e a superfície discursiva possibilitam ao observador atento certa compreensão de que os elementos verbo-visuais ali presentes apontam para a relevância das atividades científicas, suas conquistas, seus méritos e, por vezes, seus malefícios, e os atores e instituições sociais envolvidos nessa específica esfera das sociedades.
3 SELOS POSTAIS, SAÚDE MENTAL E A REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL
“Os desejos de manicômios se expressam através de um desejo em nos dominar, de subjugar, de classificar, de hierarquizar, de oprimir, e de controlar. Esses manicômios se fazem presentes em toda e qualquer forma de expressão que se sustente numa racionalidade carcerária, explicativa e despótica. Apontam para um endurecimento que aprisiona a experiência da loucura ao construir esteriótipos para a figura do louco e para se lidar com ele” (MACHADO, LAVRADOR, 2001, p. 46).
A loucura acompanha a humanidade desde muitos séculos e assumiu historicamente diversos significados, os quais nem sempre o associaram a uma doença. Os gregos, por exemplo, acreditavam que o louco tinha uma conexão com as entidades divinas, simbolizando uma ligação com o sagrado. Durante a Inquisição, a loucura era entendida como expressão da bruxaria, sendo passível de perseguição e punição pela Igreja Católica.
Antes do século XIX, a experiência da loucura no mundo ocidental era bastante polimorfa; e sua confiscação na nossa época no conceito de ‘doença’ não deve iludir-nos a respeito de sua exuberância originária. Sem dúvida, desde a medicina grega, uma certa parte no domínio da loucura já estava ocupada pelas noções de patologia e as práticas que a ela se relacionam. Sempre houve, no Ocidente, curas médicas da loucura e os hospitais da Idade Média comportavam, na sua maior parte, como o Hôtel Dieu de Paris, leitos reservados aos loucos (freqüentemente leitos fechados. espécies de jaulas para manter os furiosos). Mas isto era somente um setor restrito, limitado às formas da loucura que se julgavam curáveis (frenesis, episódios de violência, ou acessos ‘melancólicos’). De todos os lados, a loucura tinha uma grande extensão, mas sem suporte médico (FOUCAULT, 1975, p. 53).
Figura 4 – 150 anos da Academia Nacional de Medicina |
|
Fonte: Coleção particular de Salcedo |
Somente no século XVI, sob a égide do racionalismo moderno, influenciado por Descartes a loucura passou a ser vista como desrazão. De acordo com Queiroz (2009) o racionalismo moderno disocia a loucura da razão, marcando a ruptura da loucura como parte do sagrado. A partir da lógica cartesiana, que teve Descartes como seu expoente, a racionalidade impera como dispositivo na produção de conhecimento.
Conforme Foucault (1975, p. 54) “Nos meados do século XVII, brusca mudança; o mundo da loucura vai tornar-se o mundo da exclusão”. No auge do processo de urbanização e industrialização, em meados dos séculos XVI e XVII, significativas mudanças econômicas, sociais e políticas começaram a emergir, manifestadas pela intensa pobreza ao redor das cidades
Para responder a essa crise socioeconômica e na tentativa de manter a ordem social, o Estado utilizou-se do fenômeno da ‘Grande Internação’ que se constituiu como uma medida de intervenção para segregar do convívio social os mendigos, doentes, prostitutas, criminosos, desempregados e quem mais ameaçasse a ordem social, sendo levados para os hospitais gerais ou instituições de abrigamento (QUEIROZ, 2009).
Este espaço de exclusão que agrupava, com os loucos, os portadores de doenças venéreas, os libertinos e muitos criminosos maiores ou menores provocou uma espécie de assimilação obscura; e a loucura estabeleceu com as culpas morais e sociais um parentesco que não está talvez prestes a romper. Não nos espantemos que se tenha desde o século XVIII descoberto uma espécie de filiação entre a loucura e todos os "crimes do amor", que a loucura tenha-se tornado, a partir do século XIX, a herdeira dos crimes que encontram, nela, ao mesmo tempo sua razão de serem, e de não serem crimes; que a loucura tenha descoberto no século XX, em seu próprio centro, um núcleo primitivo de culpa e de egressão. Tudo isto não é a descoberta progressiva daquilo que é a loucura na sua verdade de natureza; mas somente a sedimentação do que a história do Ocidente fez dela em 300 anos. A loucura é muito mais histórica do que se acredita geralmente, mas muito mais jovem também (FOUCAULT, 1975, p-55-56).
Portanto, os hospitais gerais e as Santas Casas de Misericórdia não eram destinados ao cuidado da loucura enquanto doença, apenas “relacionam-se às condições econômicas, políticas e sociais que a modernidade inaugura” (AMARANTE, 1995, p. 24).
Embora o surgimento do hospital geral tenha sido marcado por uma necessidade econômica, sua manutenção não ocorreu exclusivamente por este motivo: ela foi caracterizada, entre outras coisas, pelas demandas da “moralidade”. Sendo assim, além da necessidade econômica, o aspecto ético-moral também foi um fator que fez tornar premente a existência do hospital, onde a experiência da loucura foi ‘encontrando o seu lugar’ (GOMES, 2006, p. 31).
Figura 5 – 4° Centenário da Fundação da Santa Casa da Misericórdia de Santos |
|
Fonte: Coleção particular de Salcedo |
Tarelow nos permite abrir mais uma trilha de conhecimento neste vasto campo que é a história da psiquiatria e da doença mental no Brasil. Ao escrever sobre Pacheco e Silva, o autor nos apresenta de que modo foi se forjando um pensamento manicomial que, ao praticar as tecnologias médicas francesas e alemãs e aplicá-las no Brasil, autorizou-se a ‘desenvolver testes em indivíduos (em geral pobres é importantes que se ressalte) sob a custódia da medicina psiquiátrica em nome do avanço das ciências’. Tudo isso vivido em parte dentro do Hospital do Juquery e outros grandes manicômios surgidos e construídos nessa época, a exemplo do que ocorria na Europa. Esse fato legitimava uma divisão da sociedade entre aqueles que seriam considerados dignos de viver e usufruir das dinâmicas da vida social e os outros que deveriam ser banidos, isolados, excessivamente controlados e colocados sob suspeitas. Disso resultava que ‘todos os problemas sociais tinham origem na presença de elementos inferiores na formação racial brasileira’ (MACIEL, 2021, p. 2, grifo nosso).
Figura 6 – Ano Internacional Contra o Racismo e a Discriminação Racial |
|
Fonte: Coleção particular de Salcedo |
Somente a partir do final século XVIII, sob influência de Phillipe Pinel, considerado o pai da psiquiatria, se concebeu a loucura o status de doença mental, de forma que possa ser patologizada, medicada e curada. A partir de sua percepção acerca do tratamento moral que deveria ser estabelecido aos loucos, Pinel foi convocado a instituir nos hospitais gerais um caráter terapêutico (OLIVEIRA, 2008).
Desde o fim do século XVIII, na Europa e nos Estados Unidos da América, vários reformadores promoviam ou defendiam transformações humanitárias nos asilos de alienados, entre outros, Vicenzo Chiaruggi na Itália, William Tuke na Inglaterra, Benjamin Rush nos EUA, Joseph Daquin e Philippe Pinel na França. Tratava-se, portanto, não de atos isolados de filantropos, mas do delineamento de uma nova forma de encarar a loucura e os loucos, mudança esta estreitamente ligada ao espírito predominante de uma época. Dentre os citados, o francês Philippe Pinel (1745-1826) destaca-se como o fundador da psiquiatria moderna, não apenas pela sua obra de reformador dos hospícios, mas, sobretudo, por fundar uma tradição, a da clínica, como orientação consciente e sistemática, ao introduzir a fundamental diferenciação metodológica entre a observação dos fenômenos e a tentativa de explicá-los, usando os princípios da história natural (ODA; DALGALARRONDO, 2004, p, 134-135).
Figura 7 – Philippe Pinel |
|
Fonte: Coleção particular de Salcedo |
Em relação às formas como se conduzia o tratamento nestes espaços Pinel postula o isolamento como fundamental a fim de executar regulamentos de polícia interna e observar a sucessão de sintomas para descrevê-los. “Organizando, dessa forma o espaço asilar, a divisão objetiva da loucura e dá-lhe unidade, desmascarando-a ao avaliar suas dimensões médicas exatas” (AMARANTES, 1995, p. 25).
A propagação de um modelo asilar enquanto lócus privilegiado de tratamento, por Pinel, contribuiu ainda mais para disseminação de uma cultura de segregação e marginalização de diversos segmentos da sociedade. Nessas instituições inúmeras violências que vão desde as físicas até a perda de autonomia e identidade foram produzidas e reproduzidas sob uma lógica de normalidade necessária para sustentar a ordem social (FIGUEIREDO et al, 2014).
O primeiro hospital psiquiátrico brasileiro, Hospício Dom Pedro II, foi construído em 1852 na cidade do Rio de Janeiro impulsionou o fortalecimento de uma cultura manicomial em prol da criação de leis que regulamentavam e regularizavam os manicômios em todo território nacional. Diante desse marco na trajetória brasileira, a disseminação da padronização do comportamento e enclausuramento da loucura propiciou a visão da periculosidade do louco, demonstrada por meio da concepção ideológica de higiene social e nas crescentes construções desses espaços (FIGUEIREDO et al, 2014).
Conceição Robaina (2010, p. 342) também acrescenta
Desta forma, a psiquiatria invade o campo social, ampliando seu espectro de intervenção, antes restrito aos indivíduos loucos. A tecnologia de cuidado inclui as intervenções químicas (injeções de terebentina, leite...) e físicas (eletrochoque, lobotomia) e os psicofármacos, mas ainda assim o projeto higienista não prescindiu do asilo. Ao contrário, elegeu-o como espaço de isolamento para prevenção de uma contaminação da sociedade.
Em consonância com o modelo asilar de cuidado e sob influência da cultura higienista foi promulgado o Decreto Lei nº 8.550 de 1946, que alavancou a construção de hospitais psiquiátricos pelos governos estaduais (BRASIL, 1946). Paralelamente ao Decreto foi potencializada pelo Estado uma estrutura hospitalar privada, por meio do convênio para prestação de serviço à população pelos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP’s), de modo a se tornar crescente o imperativo da institucionalização da população, sobretudo, as que estão à margem da sociedade.
Com o início da Segunda Guerra Mundial se requisitou da sociedade um incremento das forças produtivas, visto a quantidade de homens que tinham se ferido e/ou morrido em combate. Assim,
[...] verifica-se então a possibilidade (e necessidade) de implementação de diversificadas iniciativas de humanização dos hospícios e de programas de reabilitação dos loucos enquanto sujeitos da produção, das quais vale indicar: a Psicoterapia Institucional Francesa, a Comunidade Terapêutica Inglesa e a Terapia de Família. Mais uma vez a psiquiatria é chamada a socorrer o regime (ROBAINA, 2010, p. 342).
Através dessas transformações no âmbito do tratamento psiquiátrico, surgiu a psiquiatria comunitária “[...] que procede-se um importante deslocamento: o objeto da psiquiatria desliza da doença mental para a saúde mental” (ROBAINA, 2010, p. 342, grifos da autora). Assim se redirecionou “[...] o paradigma psiquiátrico, de um tratamento individual e assistencial para a terapêutica coletiva e preventiva” (OLIVEIRA, 2008). Esse mesmo autor ainda ressalta
Das experiências sócio-terapêuticas pioneiras, importa-nos ressaltar, em primeiro lugar, o contexto político e social em que vêm à tona, o momento historicamente preciso do pós-Guerra, quando as novas abordagens da teoria e prática psiquiátrica buscavam chamar a atenção da sociedade para a condição deprimente dos loucos internos nos hospícios / manicômios; se esses espaços assemelhavam-se aos campos de concentração, pelo terror e violência impingidos sobre corpos e mentes de milhares de indivíduos, toda e qualquer espécie de violência e desrespeito à vida humana deveria ser veementemente rejeitada e debelada, legal e socialmente (OLIVEIRA, 2008, p. 59).
Um marco importante que ocorreu na França, em 1961, alude à posição de Diretor do Hospital Psiquiátrico de Gorizia assumido por Franco Basaglia, visto que sensibilizado com a realidade do manicômio, interessou-se em conhecer melhor as experiências de Reformas Psiquiátricas na Europa. Suas vivências em Gorizia e Trieste influenciaram outros países nos diferentes continentes e possibilitaram a propagação de um modelo de cuidado que objetivava a desinstitucinonalização a partir da extinção progressiva dos manicômios e substituição por serviços territoriais (QUEIROZ, 2009, p. 40).
Para Amarante (1994, 1995), a desinstitucionalização expressou uma ruptura no modelo de cuidado que embasava a saúde mental. Compreendida como um processo social complexo, que se iniciam com a progressiva desospitalização de pessoas cujas vivências de longas internações em hospital psiquiátrico, mas não se restringe a isso, pois parte de uma compreensão de 'instituição' como muito mais que ambientes físicos, mas também como construções psíquicas dialógicas e históricas, cujas transformações ocorrem de maneira lenta e gradual.
O Brasil também sofreu influências do modelo basagliano e deu início ao processo de Reforma Psiquiátrica ainda na década de 1970, inscrita em “um contexto internacional de mudanças pela superação da violência asilar” (BRASIL, 2005, p. 06). Também sob a interferência do movimento sanitário buscava-se o protagonismo dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde na gestão do cuidado e a equidade na oferta dos serviços.
Vale lembrar o esforço e dedicação, reconhecidos nacional e internacionalmente, da Nise da Silveira, na sua longa jornada junto no campo da Psiquiatria, revolucionando o tratamento mental no Brasil, sob forte influência da clínica terapêutica junguiana. Dedicada ao ensino e aos cuidados de doentes mentais, posicionava-se contra às formas de tratamento vigentes em sua época, tais como eletrochoques, lobotomias, insulinoterapias e o confinamento em hospitais psiquiátricos. Ela é uma das poucas mulheres celebradas em selos postais brasileiros.
Figura 8 e 9 – Centenário do Nascimento de Nise da Silveira e Carl Gustav Jung |
|
|
|
Fonte: Coleção particular de Salcedo |
De acordo com Vasconcelos (2002) foi a partir da criação do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTST), formado por trabalhadores, familiares, organizações políticas e sociais, sindicatos e pessoas com longo histórico de internações, que se deu o pontapé inicial nas discussões dos direitos dos usuários de saúde mental ao cuidado em liberdade.
Figura 10 – Ano Internacional dos Direitos Humanos |
|
Fonte: Coleção particular de Salcedo |
As principais reivindicações desse movimento estavam pautadas na transformação do modelo hospitalocêntrico, a partir de uma humanização dos serviços de saúde e que se constituíssem políticas públicas democráticas. “O MTSM denunciava a violência dos manicômios, a mercantilização da loucura, a hegemonia de uma rede privada de assistência, além de construir coletivamente uma crítica ao saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico” (QUEIROZ, 2009, p. 53).
É na efervescência desse movimento que começou a ser pensado um novo modelo de cuidado, baseado na criação de uma rede de serviços territoriais. A partir dessa premissa foram promovidos encontros, fóruns e congressos em favor do fortalecimento de uma reforma institucional, social e política. Vale ressaltar que esses atores sociais também estavam integrando a 8ª Conferência Nacional de Saúde, ocorrida no ano de 1986 em Brasília, com o tema “Democracia é saúde”.
Figura 11 – 1° aniversário da Revolução Democrática |
|
Fonte: Coleção particular de Salcedo |
Esta conferência levantou debates importantes no âmbito da saúde sob a lógica da universalidade de acesso, equidade e participação (MOCELIM, 2015).
Em 1986, na VIII Conferencia Nacional de Saúde (CNS) – considerada marco histórico para os avanços nos cuidados em saúde e para a criação do SUS –, foram consagrados os princípios da Reforma Sanitária. Em 1987, instituiu‑se o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), uma consolidação das Ações Integradas de Saúde (AIS), que manteve como diretrizes a universalização, a equidade, a integralidade dos cuidados, a regionalização dos serviços com criação de distritos sanitários, a descentralização das ações, o desenvolvimento de instituições colegiadas gestoras e de politicas de recursos humanos (SCARPARO, BEDIN, 2011, p. 197).
Em 1987 dois acontecimentos marcaram a política de saúde mental no país, sendo eles a I Conferência Nacional de Saúde Mental e o Encontro de Bauru. Este, por sua vez, também denominado II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental teve como lema “Por uma Sociedade sem Manicômios” e foi um marco para o movimento social brasileiro por consolidar esforços de maneira mais efetiva para a implantação da Reforma Psiquiátrica no país.
Neste momento, o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental decidiu transformar-se em Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, “ao incluir por coerência ético-política os usuários e familiares” (PAULON et al, 2018, p. 21).
O Movimento de Luta Antimanicomial, por exemplo, com seu caráter político e reivindicativo, mantém na denúncia uma prática que persevera contra as arbitrariedades da psiquiatria e de seu estreito laço com o Estado e, ainda, contra a hegemonia do saber psiquiátrico em relação à loucura. Suas denúncias chamaram a atenção da sociedade para a relação de complementaridade construída historicamente entre o Estado e a Psiquiatria. A consciência social dessa relação promoveu o surgimento de entidades sociais e de direitos humanos preocupadas em estabelecer limites para a instituição psiquiátrica e preparando a base da transformação política e assistencial no setor de saúde mental (OLIVEIRA, 2008, p. 16).
Figura 12 – 50 Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos |
|
Fonte: Coleção particular de Salcedo |
Em consonância com o momento político do país foi criado o primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) no Brasil, na cidade de São Paulo. A primeira intervenção de desinstitucionalização também ocorreu neste mesmo Estado, em 1989, na Casa de Saúde Anchieta e obteve repercussão nacional. Além de evidenciar a força e o poder de ação do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, a partir deste período histórico as ações ganharam mais notoriedade e respaldo com a Constituição Federal de 1988, que ressaltou em seus princípios a saúde como direito e deu bases para a criação o Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da lei 8080/1990, sob o poder de controle social (BRASIL, 2005).
Com a implementação do SUS preconizou-se garantir a todos os cidadãos a atenção à saúde, assegurando o acesso universal, integral e igualitário. Essa atenção deve ser oferecida de forma qualificada e continuada, por meio de medidas de promoção a saúde, prevenção de doenças, tratamento e reabilitação. Em âmbito nacional, as Portarias SNAS n° 189/91 e a SNAS n° 224/92 regulamentaram a Política Nacional de Saúde Mental no país, tornando-se contribuições importantes para a substituição da lógica manicomial para a psicossocial, com incentivo a integralidade da atenção em saúde mental (OLIVEIRA, 2008).
No campo legislativo foi apresentado ao Congresso Nacional, ainda em 1989, um projeto de lei de autoria do deputado Paulo Delgado (PT-MG), com o objetivo de regulamentar os direitos das pessoas com transtorno mental e redirecionar o modelo assistencial em saúde mental no país. Contudo, esta lei tramitou durante 12 anos no Congresso Nacional e apenas em 06 de abril de 2001, a Lei 10.216, conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica, foi aprovada no Brasil, representando um grande avanço em relação ao tema (TENÓRIO, 2002).
Oliveira (2008) retrata que em 2002, após a lei 10.216 ser aprovada e instituída, o número de leitos e instituições psiquiátricas passam a ser reduzidas, como exemplificado entre os anos de 2003 e 2005 em que foram reduzidos 6.227 leitos espalhados por todo o país. Pernambuco e Bahia, no Nordeste, eram referências de tradição hospitalar e concentração de leitos psiquiátricos. Vale ressaltar que na década de 1960 existiam cerca de 4.188 leitos psiquiátricos oferecidos em todo Estado de Pernambuco, sendo 3.668 leitos do município de Recife.
Esses dados elucidam a centralidade da assistência psiquiátrica com base no modelo asilar e um entrave na consolidação dos princípios da Reforma Psiquiátrica no Estado. Até 1992, Pernambuco não possuía nenhum serviço substitutivo ao modelo hospitalocêntrico manicomial, todavia tornava-se um grande polo de assistência psiquiátrica privada, chegando a ter 2000 clínicas cadastradas, sendo sete conveniadas para receber repasses financeiros do SUS (OLIVEIRA, 2008).
Foram propulsores no desenvolvimento da Luta Antimanicomial em Pernambuco o surgimento da Associação de Usuários e Familiares do Estado e o decreto da Lei n° 11.064/1994 – Lei Estadual de Saúde Mental- que preconiza a substituição progressiva dos hospitais psiquiátricos pela rede de atenção integral a saúde mental. A partir dessa legislação, os leitos psiquiátricos passaram a ser frequentemente reduzidos, a fiscalização e legislação em proteção ao usuário de saúde mental se expandiu, juntamente com o monitoramento dos serviços psiquiátricos, sendo eles públicos ou privados, realizados pela Prefeitura da Cidade do Recife, através da Secretária de Saúde do Estado (OLIVEIRA, 2008).
O cuidado em saúde mental aberto, de caráter comunitário e que visava garantir a superação do estigma, da segregação e das práticas hospitalocêntricas foi idealizado a partir dos princípios da Reforma Psiquiátrica e com as normativas ministeriais como a Portaria GM nº 4.279/10, o Decreto Presidencial nº 7.508/11 e particularmente a Portaria Nº 3.088/11 que instituiu a RAPS, tornando-se o arcabouço legislativo que orientam a organização do SUS e suas regiões de saúde em redes de atenção (BRASIL, 2011; JUNQUEIRA, PILLON, 2011).
A RAPS constitui-se de serviços e equipamentos sociais variados que se organizam em componentes nos quais se distribuem seus pontos de atenção. Esses componentes são: 1) atenção básica, 2) atenção psicossocial especializada, 3) atenção à urgência e emergência, 4) atenção residencial de caráter transitório, 5) atenção hospitalar, 6) estratégias de desinstitucionalização e 7) reabilitação psicossocial. Além disso, no atual formato organizativo em Redes de atenção à Saúde (RAS), a atenção básica assume papel de coordenadora do cuidado, de centro comunicador e porta de entrada preferencial das redes, inclusive da RAPS (BRASIL, 2011).
A portaria nº 3.088/11 inseriu no componente atenção psicossocial especializada os centros de atenção psicossocial em suas diferentes modalidades. Os CAPS são serviços de caráter aberto e comunitário, composta por equipe multidisciplinar, que devem atuar sob a lógica interdisciplinar, atendendo, prioritariamente em espaços coletivos a população com transtornos mentais graves e persistentes e aquelas com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas. Classificam-se de acordo com o porte, população atendida e capacidade de atendimento em: CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPS ad, CAPS ad 24h e CAPSi (BRASIL, 2011).
Figura 13 – Luta Contra o Abuso de Drogas |
|
Fonte: Coleção particular de Salcedo |
Como fomento desse cuidado no território e fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial também foram criadas as residências multiprofissionais em saúde para atuar nesses serviços substitutivos, enquanto campo de prática. Orientadas pelos princípios e diretrizes do SUS, a partir das necessidades e realidades locais e regionais, propõe-se a formar profissionais preparados para atuar de forma interdisciplinar e intersetorial, crítica e propositiva no âmbito técnico, ético e político, comprometidos com os princípios da Reforma Psiquiátrica Brasileira (VARGAS, 2011).
Em toda sua história, a medicina buscou criar uma classificação das doenças mentais. A criação do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) pela American Psychiatric Association (APA), em 1952, derivou da necessidade de uma sistematização das diversas classificações existentes. Em consonância com a Organização Mundial da Saúde (OMS), à APA tem grupos de trabalho que discutem mundialmente as revisões das nomenclaturas do DSM. No corrente ano será lançada a quinta edição com novas revisões, incluídas questões relativas à pandemia da Covid-19.
Vale pontuar que, em relação a pandemia, jamais na história humana patologia alguma acarretou resposta médica, científica, social, econômica, política e cultural de modo tão acelerado e mundializado, em que pesem a escalada de sintomas de saúde mental, de consumo de fármacos ansiolíticos, de políticas de extrema direita, de práticas e discursos negacionistas e anti-científicas e de sistemas de fake-news por meio de bots na Internet. Sobre a covid-19, entre 2020 e 2021, mais de 100 unidades políticas emissoras veicularam selos postais comemorativos celebrando a vida, a ciência e as pessoas na linha de frente (LEFRERE, RECOING, DELACOUR, 2021).
Figura 14 – 20° Aniversário da Organização Mundial da Saúde |
|
Fonte: Coleção particular de Salcedo |
Figura 15 – Bloco filtélico temático: covid-19 |
|
Fonte: Coleção particular de Salcedo |
A experiência da loucura nunca foi homogênea no mundo. Ela, de fato, sempre foi tratada em diversas e distintas narrativas desde o campo das artes clássicas até o discurso acadêmico-científico. Por exemplo, a obra intitulada O Alienista (ASSIS, 2014) narra circunstâncias históricas de um médico que acabara de chegar ao continente europeu, viagem esta, com anuência da Câmara Legislativa da cidade de Itaguaí, em que é inaugurado um asilo de loucos chamado Casa Verde. O protagonista da narrativa, Simão Bacamarte, inicia um recolhimento de quase toda a população com a desculpa de sua loucura, colocando em xeque o saber médico do alienista.
O Alienista foi escrito num período histórico em que a Psiquiatria era prática de experimentos, o primeiro hospital psiquiátrico do Brasil tinha sido fundado há pouco tempo. Michel Foucault faz um relato bem vasto destes acontecimentos em seu livro A história da loucura na idade clássica: essa episteme, psiquiatria no período estudado pelo pensador francês tinham certezas demais, bem como o protagonista Simão Bacamarte.
Figura 16 – 150 Anos do Nascimento de Machado de Assis |
|
Fonte: Coleção particular de Salcedo |
Por sua vez, numa obra clássica brasileira sobre memória, velhice e psicologia social Bosi (1987, p. 38) relata:
Somos mesmo levados a nos perguntar se o velho conceito de demência senil, pretenso resultado de perturbações cerebrais, não se deva revisar completamente, e se essas pseudo-demências não são resultados de fatores psicossociológicos agravados rapidamente, por colocação em instituições inadequadamente equipadas e dirigidas, como também por internações nos hospitais psiquiátricos, onde esses doentes muitas vezes abandonados a si mesmos, privados de estímulos psíquicos necessários, separados de todo interesse vital, não têm a esperar senão um fim que se convém em desejar rápido.
Certas vezes, os transtornos mentais e o sofrimento decorrente não estão em narrativas ficcionais, mas na vida cura e nua. O filho de Clarice Lispector, por exemplo, Pedro, iniciou no período da sua adolescência a ter comportamentos de extrema ansiedade acompanhada de agitação, particularmente, com aqueles em sua volta. Por conta do avanço da agressividade Pedro foi tratado por psicólogos, psiquiatras e passou por muitas internações, acarretando um sentimento de culpa na escritora e mãe.
Mas sua dor maior era a enfermidade crescente de seu filho Pedro. O menino brilhante tinha se tornado um adolescente perturbado. “Quando entrou na adolescência foi se fechando”, disse Tania. “Clarice fez tudo o que era possível: colocou-o na análise, em uma porção de tratamentos. Não teve jeito.”{10} Já em 1957, em Washington, Clarice buscara ajuda, mas com o tempo as excentricidades de uma criança extremamente talentosa degeneraram em franca esquizofrenia. Pedro vivia numa terrível agonia. Rosa Cass via que a situação feria a mãe dele “de maneira brutal. Ela estava aflita, desesperada”. Ele era imprevisível. Em casa, berrava, tão alto que os vizinhos reclamavam. Não era possível levá-lo a parte alguma, nem mesmo ao cinema, pois ele não conseguia ficar quieto. Outra amiga se lembra de um jantar durante o qual Pedro ficou o tempo todo dando voltas na mesa, com as mãos cobrindo o rosto (MOSER, 2009, p. 226).
Figura 17 – Centenário do Nascimento de Clarice Lispector |
|
Fonte: Coleção particular de Salcedo |
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em geral não é dado o devido valor a um selo postal. No corrido e ocupadíssimo cotidiano da sociedade contemporânea, encaramos esse artefato apenas como um pequeno e insignificante fragmento de papel descartável que indica a taxa a ser cobrada ao remetente de uma correspondência. Esse pequeno pedaço de papel, por vezes, nem chega a ser percebido como um documento, propriamente dito. Mas ele é.
O seu processo de construção tem um início, meio e fim. Além de um valor ou função social atribuído pelo Estado, é ele quem indica a tarifa corrente às comunicações postais. Mas não apenas isso. É um artefato documental que percorre o mesmo sistema de produção capitalista como qualquer outro objeto tecnológico, provenientes dos regimes sócio-político-econômicos trazidos à tona no pretérito europeu (SALCEDO, 2010)
O Estado, ao produzir selos postais comemorativos, contribui para a possibilidade de que ocorra um processo de assujeitamento. Os sujeitos que constituem o tecido social, particularmente aquele de interação com o regime de informação do selo postal, assumem os discursos institucionais possíveis conforme o seu trânsito. Mas, percebemos esses sujeitos como elementos participativos e atuantes do processo comunicativo e discursivo.
Os selos postais detêm na sua minúscula textualidade uma incontável variedade de signos, que deixaram de ser apenas signos e são transformados em veículos de transmissão de verdades estabelecidas, de significações de mundo e de sentidos socialmente construídos. Isso implica dizer que os signos são mutáveis na ação social.
Um resultado satisfatório deste estudo tem relação com o fato de que desenvolvemos as condições necessárias para que tanto os pesquisadores quanto o público não-pesquisador tenham a possibilidade de olhar atentamente ao selo postal como um artefato que difunde ciência a partir de estratégias discursivo-textuais específicas e, por conseguinte, considerá-lo integrante do gênero divulgação científica. Mas, também podemos olhar esse artefato como memória sócio-científica, objeto que registra o fato, a memória, impedindo o acontecimento do esquecimento.
Nesse sentido, o projeto de desenvolvimento do Repositório Filatélico Brasileiro (REFIBRA), homologado pelas instâncias da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e cadastrado no Grupo METIC (ex-Imago e Humanidades Digitais), no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, e que defende os valores e impactos sociais de ações de pesquisa, ensino, extensão, por sua vez, também serve como base documental para investigar, preservar e difundir a construção da memória do amanhã, no presente (SALCEDO, 2010, 2011, 2013).
O REFIBRA, então, pode servir como ambiente para investigar a produção de discursos científicos, no presente, em documentos que sejam similares em suas formações discursivas (ex.: selos postais, posts, comments, likes etc), apontando para temáticas de ordem científica e, especificamente, que respondam às demandas de emergências pandêmicas, como é o caso contemporâneo coronavírus - COVID-19.
Por fim, defendemos a utilização do selo postal também como instrumento pedagógico, como uma ferramenta de fácil manuseio, custo baixo, que provoca o processo criativo e auxilia na leitura das realidades possíveis. Os selos postais permitem mediar essas realidades, assim como fazem outros media (fotografia, cinema, novela, romances etc).
REFERÊNCIAS
ALTMAN, Dennis. Paper ambassadors: the politics of stamps. North Ryde: NSW, 1991.
AMARANTE, Paulo. Psiquiatría social e reforma psiquiátrica no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994.
AMARANTE, Paulo. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: SDE/ENSP, 1995.
ASSIS, Machado. O Alienista. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
BOSI, Eclea. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 1987.
BRASIL. Decreto Lei nº 8.550 de 1946. Autoriza o Ministério da Educação e Saúde a celebrar acordos, visando a intensificação da assistência psiquiátrica no território nacional. Diário Oficial da União - Seção 1, 05 de jan., 1946, p. 163. Disponível em: https://bit.ly/3hewncr. Acesso em: 10 maio 2022.
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União – Seção 1, n. 247, 26 de dez., 2011, p. 230/232. Disponível em: https://bit.ly/33R8TXN. Acesso em: 10 maio 2022.
FEITOSA, Kézia de Lira; SALCEDO, Diego Andres. Um estudo histórico-bibliográfico do Catálogo de Selos do Brasil – RHM. IN: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO – ENANCIB. 19. 2018, Londrina [PR]. Anais... Londrina: UEL, 2018. p. 6653-6661. GT-10 – Informação e Memória.
FOUCAULT, Michel. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. 6.ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.
LEFRÈRE, Bertrand; RECOING, Amélie; DELACOUR, Hervé. COVID-19 Postage Stamps—Messages in a Message. Jama, [S.L.], v. 325, n. 14, p. 1377, 13 abr. 2021. American Medical Association (AMA) Disponível em: https://bit.ly/3BXw538. Acesso em: 10 maio 2022.
MACHADO, Leia Domingues; LAVRADOR, Maria Cristina Campello. Loucura e subjetividade. In: MACHADO, Leila Domingues et al.(Orgs.). Texturas da psicologia: subjetividade e política no contemporâneo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. p.45-58.
MACIEL, Marcelo de Abreu. Os desafios na pesquisa biográfica: de Antonio Carlos Pacheco e Silva à constituição de uma época. Cadernos de Saúde Pública. v. 37, n. 5, p. 1-3, 2021. Disponível em: https://bit.ly/3BYrrC7. Acesso em: 10 maio 2022.
MEYER, P. Catálogo de selos do Brasil 2019. 60. ed. São Paulo: RHM, 2020.
MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
ODA, Ana Maria Galdino Raimundo; DALGALARRONDO, Paulo. O início da assistência aos alienados no Brasil ou importância e necessidade de estudar a história da psiquiatria. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., v. 7, n. 1, p.128-141.Disponível em: https://bit.ly/3hmaGHn. Acesso em: 10 maio 2022.
OLIVEIRA, José Rogério de. Políticas públicas de saúde mental e reforma psiquiátrica em Pernambuco (1991-2001). Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008.
QUEIROZ, Valéria Debórtoli de Carvalho. Entre o passado e o presente: a prática profissional do Assistente Social no campo da saúde mental. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Serviço Social, 2009.
RIBEIRO, Carolina Maria Ferreira; SALCEDO, Diego Andes. Ciência aberta, covid-19 e as memórias do amanhã mapeamento das redes e mídias sociais digitais utilizadas como plataformas científicas entre janeiro e abril de 2020 em Pernambuco. IN: JORNADA DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA FACEPE, 24. 2021, Recife [PE]. Anais… Recife: FACEPE, 2021. Disponível em: https://bit.ly/3snXok2. Acesso em: 10 maio 2022.
ROBAINA, Conceição Maria Vaz. O trabalho do Serviço Social nos serviços substitutivos de saúde mental. Serviço Social & Sociedade. n. 102, p. 339-351, 2010. Disponível em: https://bit.ly/3pnhoBs. Acesso em: 10 maio 2022.
RODRIGO, Asiri.; MAJOOR, Jenifer. Stamping the message: psychiatric themes in philately. Australasian Psychiatry. v. 20, n. 3, p.188-192, 2012. Disponível em: https://bit.ly/3M4GKO1. Acesso em: 10 maio 2022.
SALCEDO, Diego Andes. Lacunas na Arquivologia contemporânea: uma perspectiva da Filatelia. Arquivistica.net. v. 2, n. 1, pp. 104-113, 2006. Disponível em: https://bit.ly/3vfN1Ar. Acesso em: 10 maio 2022.
SALCEDO, Diego Andes. Filatelia e memória: pequenos embaixadores de papel. In: VERRI, G. M. W. (Orga.). Registros do passado no presente. Recife: Bagaço, 2008. p. 155-195.
SALCEDO, Diego Andres; SANTANA, Adriana. Memória e representação do jornalismo brasileiro: o caso do selo postal. Brazilian Journalism Research, v. 6, n. 2, p. 42–58, 2010. Disponível em: https://bit.ly/3A0YWol. Acesso em: 10 maio 2022.
SALCEDO, Diego Andes. A ciência nos selos postais comemorativos brasileiros: 1900-2000. Recife: Ed. da UFPE, 2010.
SALCEDO, Diego Andres; BRONSZTEIN, Karla. A visibilidade e representação social das religiões nos selos postais brasileiros. HORIZONTE - Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 10, n. 25, p. 233-254, 2012. Disponível em: https://bit.ly/3u22Uck. Acesso em: 10 maio 2022.
SALCEDO, Diego Andes. Espelhos de papel: pelo estatuto do selo postal. 255 p. Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. 2013. Disponível em: https://bit.ly/2Y2p0t2. Acesso em: 10 maio 2022.
SALCEDO, Diego Andes. O selo postal como objeto de ensino e divulgação das ciências. Revista Brasileira de Ensino de Ciência e Tecnologia, v. 7, p. 90-120, 2014. Disponível em: https://bit.ly/3btla8e. Acesso em: 10 maio 2022.
TENÓRIO, Fernando. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais: história e conceitos. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, [S.L.], v. 9, n. 1, p. 25-59, abr. 2002. FapUNIFESP (SciELO). Disponível em: https://bit.ly/33VcEva. Acesso em: 10 maio 2022.