UM OLHAR BIOGRÁFICO SOBRE MÉDICAS-CULTURAL DO SÉCULO XIX/XX EM PORTUGAL E NO BRASIL
Zeny Duarte de Miranda[1]
Universidade Federal da Bahia - UFBA
zenydu@gmail.com
Salim Silva Souza[2]
Instituto Federal de Sergipe - IFS
Carmen Matos Abreu[3]
Universidade do Porto – U.Porto, Portugal
carmen.m.abreu@gmail.com
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Resumo
Apresenta-se o olhar biográfico sobre médicas-cultural dos séculos XIX/XX, suas trajetórias e, inevitavelmente, contingências, relações sociais, raciais e de gênero de intelectuais médicas que viveram nos séculos XIX e XX, em Portugal e no Brasil. Quer na Bahia, Sergipe e quer noutros estados brasileiros, como também noutros países, no que concerne à disposição do leque espácio-temporal, a presença de médicas está infimamente aqui representadas, com similitudes suportadas pelas biografias das primeiras estudantes formadas em Medicina, em ambos os países. A partir de então, inicia-se o surgimento de protagonistas da Medicina (Ciência), assim como das demais áreas, a exemplo de mulheres-cultural com invariáveis produções na Literatura, Artes, Política, Cultura, Religião, Ciências Sociais e nas Humanidades em geral. Este estudo é originário do projeto Os médicos e a cultura: estudo crítico e guia geral dos arquivos de médicos escritores, artistas e pensadores de Portugal e Bahia - Brasil, iniciado em 2006, ainda em desenvolvimento, com abordagens sobre a existência de médicos e médicas que se permitem buscar motivações noutras atividades, paralelas e/ou simultâneas, fora da profissão. Todavia, reconheça-se, somente a partir do ano 2006 é que surge o interesse sobre a temática em foco, investigada no âmbito de Portugal e da Bahia, à luz da Ciência da Informação (CI), esta rica área de multidisciplinaridade, com enfoque no tratamento e gestão da informação e do conhecimento. Com o alargamento desta pesquisa, observou-se a quase inexistência de literatura sobre médicas-cultural, protagonistas sociais, representantes da intelligentsia.
Palavras-chave: Médicas-Cultural. Biografias. Memória digital. Médicas – Portugal. Médicas – Brasil.
TITLE BIOGRAPHICAL LOOK ABOUT CULTURAL MEDICINE OF THE 19TH / 20TH CENTURY IN PORTUGAL AND BRAZIL
Abstract
This work intends to observe some biographies of female doctors who lived in the 19th and 20th centuries in Portugal and Brazil - whom we will henceforth call "médicas-cultural" - considering their relationship with culture, professional standard, social, gender and racial contingencies of their time. With regard to the spatio-temporal considered frame, it should be noted that the few female physicians we select for this paper were based on the first licensed students in Medicine, both in Bahia and Sergipe, other Brazilian states or even in foreign countries. To start with we realized the emergence of very high reliable leading figures in Medicine as well as in other areas of knowledge, a surprising group of "cultural-women" with fantastic productions in the several Humanities areas, pointing out the Literature, Arts, Politics, Culture, Religion and Social Sciences. On the basis of this study is the project "Doctors and Culture: a critical study and general guide to the archives of medical writers, also being artists and thinkers from Portugal and Bahia, Brazil". Started in 2006 and still under development, now it's our purpose to approach the existence of male and female physicians that seek for motivations to develop other intellectual activities in parallel or simultaneously with their professional ones. However, it must be recognized that only from 2006 onwards the interest on this topic arose, researched in the context of Portugal and Bahia frames, according to the Information Science rules (CI), a remarkable multidisciplinary area focusing the treatment and management of information and knowledge. In fact, as soon as we started this early research, we could notice the existence of very few written works about "médicas-cultural" in the field of social representatives of the intellectuality.
Keywords: Medical-Cultural. Biographies. Digital memory. Portuguese female doctors. Brazilian female doctors.
1 PONTO DE ARRANQUE
Particularmente observada nos interesses que cruzam o cultural, social e artístico, denota-se na classe médica o gosto intelectual para atuar em atividades de diferentes áreas do conhecimento, além da Medicina, como é evidente. Somos levados a creditar que o sucedido de médicos e médicas, concomitantemente com as suas profissões, enveredarem por outras ocupações que lhes são alheias, o que talvez se justifique pela permanente presença da realidade paradoxal de vida-morte no exercício profissional da saúde, situação pela qual, segundo Duarte e Silva (2016, p.17), esse fato os torna “mais próximos do processo de criação e da tendência à escrita, ao desenho, à pintura e às demais formas de expressão do belo, estético, lírico, lúdico”.
Parafraseando o insigne António José Barros Veloso, médico-cultural, em palestra apresentada por ocasião da homenagem recebida pelo V Colóquio Internacional A Medicina na Era da Informação (MEDINFOR), realizado nos dias 13 a 17 de setembro de 2020, promovido pela Universidade Federal da Bahia em parceria com a Universidade do Porto:
É comum dizer-se que os médicos, mais do que quaisquer outros grupos profissionais, revelam uma atracção particular por actividades exteriores à sua profissão. A partir desta afirmação, surgem duas explicações: ou quem tem vocação para a Medicina possui uma sensibilidade especial e por isso se sente atraído pelas humanidades, ou a atividade médica, pelos contactos que proporciona com os problemas humanos, com o sofrimento e com a morte, leva os médicos a projectarem suas experiência em actividades culturais ou simplesmente a procurarem nelas compensação para o desgaste da profissão… Mas, para além de agentes passivos, os médicos foram também protagonistas activos que conquistaram posições de topo e deixaram uma marca imperecível como políticos, pensadores, arqueólogos, polemistas (VELOSO, 2021, p.113).
Outro fator que também poderá contribuir para que o médico lance o seu olhar noutras avenidas da criação intelectual indica ser a necessidade de busca de equilíbrio mental e ainda “profissional, da compreensão da alma humana e dos valores do ciclo” (DUARTE; SILVA, 2016, p. 18), e na medida em que as atividades desenvolvidas na área médica são sempre desafiadoras, tanto para garantir a atualização nos campos tecnológico e científico, como quanto no sentido da própria prática do ofício, no qual o profissional, em muitos casos, tem de dar resposta a mais de um tipo de ambiente de trabalho.
Os estudos no âmbito dos médicos-cultural relacionados com a CI foram iniciados em 2006 a partir do projeto de Pós-Doutorado da Profª. Drª. Zeny Duarte de Miranda, trabalho intitulado Os médicos e a cultura: estudo crítico e guia geral dos arquivos de médicos escritores, artistas e pensadores de Portugal e Bahia - Brasil. Com base nesta pesquisa, este percurso investigativo tem-se vindo a estender até aos dias atuais sob a colaboração do Prof. Dr. Armando Malheiro da Silva, os quais têm sido realizados na Universidade do Porto (U. Porto), Portugal, com apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), organismo tutelado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal.
Cumpre acrescentar que por meio do referido projeto foi possível destacarem-se vários médicos nas suas relações particulares e/ou espontâneas com a cultura, dando-se lugar a um trabalho memorial desses ilustres personagens. Acerca do desenvolvimento desta proposta, Silva (2016, p. 147) relatou que:
o projecto foi inscrito no campo da CI com o propósito de recolher, organizar, representar e tornar acessível toda a informação relativa a cada médico português e baiano, no recorte temporal dos séculos XIX e XX, que se dedicaram à literatura e às artes (pintura e música). O registo da informação, relativa à atividade clínica e científica dos médicos “polivalentes”, não foi excluído do escopo do projecto, mas reencaminhado para as “bases” analógicas e/ou digitais.
De notar que a função primordial do mencionado projeto Os médicos e a Cultura é a de identificar:
[...] os médicos e as pessoas detentoras de informações e conjuntos documentais destes profissionais da medicina que produziram e legaram à sociedade representativa produção nas áreas da filosofia, literatura, política, artes e cultura de alguma maneira, disseminar esse arcabouço cultural para a sociedade e torná-lo parte de uma base de dados a ser utilizada como fonte de pesquisa e informação (BRANCO; SANTANA; DUARTE, 2019, p. 200).
E isto porquanto, esclarecem ainda Duarte e Silva (2016, p. 218), “a ideia era, e continua sendo, de mostrar a versatilidade artística e cultural dos médicos, enraizando-a, possivelmente, na especificidade ontológica da sua profissão de “salvadores” de corpos, não podendo ser indiferentes às emanações, in extremis, do espírito”. Alargado, como haveria de ser, o estudo vislumbra o olhar sobre médicos-cultural em solo brasileiro, para além da Bahia. E assim, a partir de dezembro 2020, no espaço das discussões sobre médicos-cultural e a realidade desse fenômeno inclui-se o estado de Sergipe, corroborando com a ressignificação da memória sergipana pela rica presença de nomes de ilustres médicos desse Estado, muitos deles, inclusive, formados pela Faculdade de Medicina da Bahia que deixaram legados culturais, artísticos, filosóficos, para além de apenas científicos.
Em Portugal a direção foi igual. Impunha-se relacionar-se a realidade transparente da imensa produção cultural de médicos portugueses com a mesma cadência dos médicos da Bahia e alhures. Um dos objetivos do projeto "Os médicos e a cultura...” assenta em acolher, em sua territorialidade, muito mais do que um único espaço, indo ao encontro da multiculturalidade em suas diversas particularidades de maneira a tornar nítida a convergência de nomes integrantes de médicos-cultural com todas as características advindas da espacialidade e temporalidade. Nessa grandeza, e para nos ajudar a melhor compreender o sentido da extensão territorial que esta pesquisa almeja, atentemos nas palavras de Raffestin (1993, p. 143), o qual considera o território como uma construção conceitual a partir da noção de espaço, procurando fazer “uma distinção entre algo já ‘dado’, o espaço – na condição de matéria prima natural e um produto resultante da moldagem pela ação social dessa base – e o território – um construto, passível de "uma formalização e/ou quantificação". Ainda em Raffestin (1993),
o território se constitui em um complexo jurídico-sócio-econômico, modelado em uma multiplicidade de paisagens, exibindo feições características. O território é, assim, a base física de sustentação locacional e ecológica, juridicamente institucionalizado do Estado Nacional. Contém os objetos espaciais, naturais e/ou construídos, na condição de instrumentos exossomáticos, para (re)produção de uma identidade étnico-sócio-cultural (LEFEBVRE, 1978, p. 259 apud RAFFESTIN, 1993, p. 143).
Com essa riqueza de saberes, a CI é beneficiada pela sua característica endógena de ser uma área a dialogar com outras tantas. Não podemos deixar de assinalar que Saracevic (1996) identificou três particularidades da CI: interdisciplinaridade, vinculação com a tecnologia e participação ativa na era da informação. Observado por esse ângulo, a CI é uma área que vem interagindo incessante e instintivamente com a Biblioteconomia, Arquivologia, Ciência da Computação, Engenharias, Comunicação, Ciências Humanas, para além de outras, aparentemente díspares, porém possuidoras de componentes comuns aos seus objetos e traços epistemológicos e conceituais. Ainda segundo aquele autor, as relações interdisciplinares da CI estão também bastante próximas da Inteligência Artificial em estudos aplicados, bem como da Ciência Cognitiva em trabalhos teóricos e experimentais. Neste contexto, inclui-se, obviamente, a Medicina.
Considerando-se o ponto de vista de Castells (2008), a Sociedade da Informação tem como principal característica a forte presença e influência das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC). A informação terá sido, por tal, a matéria-prima desse tempo e sociedade, intrínseca a todos os processos que perpassam a vida dos indivíduos. Percebe-se então que os recursos das TIC têm como função primordial reunir e compartilhar informação relativa à disseminação de conhecimentos e registros para as gerações seguintes. Nesse sentido, um dos frutos do estudo Pós-Doutoral anteriormente referenciado é o sistema SiS Médicos e a Cultura, interligado às plataformas digitais - TIC. Apresenta-se publicado numa página sem fins lucrativos, cujo objetivo único é o armazenamento de dados acerca da vida, obra, pensamento e acervos documentais e pessoais de médicos do Brasil e Portugal, os quais produziram para além da Medicina. A primeira versão do SiS Médicos e a Cultura foi apresentada na WEB em 2008, sendo que, ao longo dos anos, outras versões atualizadas foram sendo desenvolvidas. Atualmente, o banco de dados adota uma nova nomenclatura denominada WEBSISMEDICOS e encontra-se hospedado em servidores da Superintendência de Tecnologia e Informação (STI), órgão responsável por toda a gestão tecnológica informacional da UFBA, e no seguinte endereço: http://www.websismedicos.ufba.br/
2 CIRCUNSTÂNCIAS OU IDIOSSINCRASIAS?
Neste estudo, observou-se que, no âmbito da biografia, pensamento, moda, costume e enfrentamento do modo de ser e estar de médicos e de médicas no fazer ciência com produções em outras expressões e dimensões de vida, os sentimentos relacionam-se com a dicotomia vida e morte e com a busca da segurança e da liberdade, a refletirem sobre si ou sobre aquilo que poderiam definir como escolhas e atitudes e, consequentemente, à formação da própria identidade.
As propostas biográficas, de pensamento, moda, costumes e, sobretudo, a atitude profissional de médicos e médicas perante as suas profissões foram moldando o fazer científico, isto sempre na esteira de expressões e dimensões de vida na sua correlação com a vertente sentimental, em permanente busca de segurança e liberdade, envoltos em processos de autorreflexão sobre si, sobre o outro e sobre o modo como poderiam definir escolhas e atitudes perante um constante questionamento da referida dicotomia vida-morte, afinal, num contínuo processo de renovação e aperfeiçoamento identitários.
Será, neste momento, oportuno referir que Zygmunt Bauman (2011) considera a dicotomia da liberdade, com base em Sigmund Freud, acrescentando: “a civilização é sempre uma troca - ao escolher a liberdade, é preciso abrir mão de certa segurança; ao escolher a segurança, é preciso abrir mão de certa liberdade”.
Bauman (2011), nas suas escritas acerca da compreensão sociológica, por vezes permeadas pela própria biografia, no geral tenta associar episódios autobiográficos. Neste caso, tomamos como exemplo o seu longo exílio passado no pós-Varsóvia, muitas vezes evidenciado em suas escritas com a utilização de conceitos metafóricos ao estimular entendimento sociológico acerca da realidade social no nível do senso comum. Bauman apresenta discurso sobre a compreensão sociológica voltada à “promoção da autonomia e da liberdade humanas”, discute e problematiza temas relacionados com “a autoconsciência, a compreensão e a responsabilidade individuais”. Nesse espaço, Bauman discute e problematiza temas relacionados com “a autoconsciência, a compreensão e a responsabilidade individuais” (BAUMAN, 2001, p.243).
Em Freud (1974) chegamos até a ideia básica por ele definida acerca do mal-estar que assola os indivíduos em sua vida civilizada, teoria que defende que a civilização é fundada na base de uma renúncia à satisfação pertencente ao comportamento, ou processo psíquico fortemente emocional, impulsivo e essencialmente irracional, em constante repressão das pulsões, caracterizado ainda pelas modificações às habituais disposições comportamentais e emocionais compreendidas como "tarefa econômica de nossas vidas" (FREUD, 1996, p.103). A complexidade da questão parece ser a possibilidade, ou não, em conciliar as escolhas individuais de felicidade com as exigências contidas no processo de desenvolvimento das sociedades.
Por outro lado, apesar da emergência das discussões da agenda sociopolítica, com a preocupação da saída de uma sociedade escravista e da crescente progressão de uma agenda feminista no final do século XIX e início do século XX, a delimitação dos espaços sociais e a possibilidade de ascensão a partir dos critérios estabelecidos pela condição racial e de gênero era o modus operandi vigente.
Logo, a biografia de médicas-cultural permite-nos investigar as questões ligadas às escolhas de vida alcançadas por mulheres do século XIX e XX, ampliando possibilidades ao entendimento deste período como fator importante nos seus ingressos nos cursos superiores, na política e em diversos âmbitos profissionais e sociais, num tempo de preconceitos motivado pelo forte patriarcado causador da repressão de mulheres, deixando-as excluídas das representações sociais e, sobretudo, de profissões ditas para homens. Sem dúvida, as desigualdades sociais de gênero ancoram-se na divisão do trabalho entre homens e mulheres e, portanto, a opressão econômica ainda hoje é visível. Na verdade, o sistema de dominação cultural e simbólico persiste ao impor modos de funcionamento social que a todos e todas atinge.
Recuando no tempo, reportamo-nos aos idos anos compreendidos, sem entrar em pormenores, no período 1860/1940, quando o patriarcado conduzia as relações sociais e o pensamento machista, sendo que apenas há algumas décadas o comportamento começou a ser problematizado, especialmente pelos movimentos feministas que, ainda hoje, se empenham pelo reconhecimento de igualdade de gênero, isto é, pela extinção da cultura machista nos diversos âmbitos sociais, embora o pensamento machista ainda continue a dominar culturalmente nas várias áreas sociais.
Tal ambiência promoveu, e não deixa de continuar a promover, fortes impedimentos nas ocupações das mulheres em diversas frentes coletivas. Importará, pois, rever quão extensivos foram os problemas enfrentados pelas mulheres em seus ingressos nas escolas médicas, tanto no Brasil como em Portugal, e alhures. Então, as escolas médicas no Brasil e Portugal passaram a receber as primeiras mulheres no ensino do curso de Medicina somente a partir de meados e finais do século XIX, mesmo assim com resistência por parte da sociedade. O esforço de superação verifica-se com o progressivo ingresso de alunas nos referidos cursos de Medicina, sobretudo após lutas femininas nas quais desafiaram os mais diversos obstáculos inerentes ao preconceito machista que teimava em ceder. Terá sido por estas razões que questionamos no título deste subcapítulo se as tomadas de posição e ações destas médicas-cultural obedecem às circunstâncias, em princípio as sociais, ou se obedecem a idiossincrasias resultantes dos seus carateres.
Assim, a biografia de médicas-cultural foi-se ampliando, e nesta constatação esta pesquisa dará destaque a três médicas, formadas na Escola Médica da Bahia e na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, Portugal, pelo encontro da similitude existente entre Rita Lobato Velho Lopes, Adelaide Cabete e Ítala Silva de Oliveira, referências a partir do estudo Médicos-Cultural: realidades de Portugal e do Brasil, realizado a partir de 2006, já referenciado.
A biografia das assinaladas médicas-cultural permitirá então conhecer e analisar o passado social e suas ações humanas definidas pelas estruturas sociais, colocando-as numa relação dialética, a partir do perfil da cada uma, enquanto processo de desenvolvimento de si e enquanto identidades tripartidas em torno de uma dimensão espácio-temporal. Contraporemos um breve olhar biográfico sem adentrarmos na análise comparatista, o que exigiria o acesso aos arquivos pessoais das mencionadas protagonistas, com possível escavação, arqueologicamente dito – aquilo a que Foucault (2002) denomina de campo associado, necessariamente promovendo várias incursões à produção do conhecimento já existente nesta matéria.
3 O NÚCLEO DA PESQUISA
Este estudo é um dos ramos do projeto "Os médicos e a cultura: estudo crítico e guia geral dos arquivos de médicos escritores, artistas e pensadores de Portugal e Bahia - Brasil”, e tem como objetivo validar a ideia de acolher e alistar nomes de médicas portuguesas, baianas e sergipanas, nascidas no século XIX e formadas por Escolas e Faculdades de Medicina de Portugal e da Bahia[4], as quais se debruçaram e intervieram nos meandros vigentes de linhagem patriarcal e machista, ideários que lhes eram antagônicos. Foram todas de enorme intrepidez e culturas diversificadas, tendo complementado a formação e exercício da Medicina com o interesse pelo artesanato, pintura, escrita, tendo ainda sido, sincronicamente, protagonistas de ações sociais e políticas e defensoras da igualdade de direitos entre os gêneros, raça e etnia.
Percebeu-se pelas biografias destas médicas de Portugal, Bahia e Sergipe – e pese embora pertencerem a mundos díspares – que descortinam, entre elas, traços de temporalidade e mundividências com semelhanças de costumes, moda, comportamento e várias nuances, permitindo-as à acumulação de acervos pessoais, bibliográficos, entre outros, singulares, constituídos num desconhecido legado informacional/cultural (espólios, conforme terminologia em Portugal[5]). Tais características desvendem-se intramuros nas suas residências e/ou em instituições nas quais tiveram assento, além de possuírem originalidade e complementarem estudos sobre culturas de mulheres na sociedade luso-brasileira (MIRANDA, 2020).
Como afirma Pierre Nora (1993), na medida em que a informação está fortemente relacionada com o cotidiano, memória, e, consequentemente, biografia, tem passado por um processo de “esquecimento”. Este nosso esforço manifesta-se exatamente no sentido de contrariar o referido esquecimento e, pelo contrário, trazer à luz da atualidade as propostas encontradas, a partir destas biografias, elemento principal deste estudo, como é sabido. Com respaldo na experiência coletiva por meio de estudos sobre temporalidade e conjunturas sócio-espaciais, demonstradora ainda da real possibilidade de mudança de paradigmas na sociedade da informação e das outras áreas do saber, reuniu-se informação sobre médicas e médicos-cultural num sistema digital – plataforma digital.
Partindo do pressuposto de que, sem pretender recordar, não faria sentido justificar as práticas e decisões realizadas por uma pessoa ou sociedade em tempos idos, percebe-se que a memória cumpre a organização seletiva dessa mesma relação entre esquecimento e recordação, além de ser uma forma de reconstrução e estruturação contínua do passado a partir do presente, dando-lhe sentido por meio da construção altamente seletiva das causas, origens, motivos e razões históricas das operações atuais (LUHMANN, 2007).
Assim, a presente pesquisa propõe rever biografias de médicas a partir de reflexivas interpretações, sempre no âmbito que contextualiza suas vidas e memórias-cultural, em suma, processos de criação, pensamento e acervos documentais por elas acumulados, muitas vezes guardados em espaços residenciais, por vezes em mãos de familiares ou de terceiros das titulares. E, como bem pondera o historiador português Hélder Pacheco “certos homens – mulheres (grifo nosso) são cometas, são estrelas ou raios de luz” (MOREIRA, 2012), nessa luz abriga-se a herança documento-cultural deixada por incalculável número de médicas insignes da sociedade de Portugal, Bahia e Sergipe. Será fácil de compreender que, neste texto, se torna impossível abranger a máxima completitude possível, para tal requerendo-se mais capítulos.
4 ASPECTOS METODOLÓGICOS
Preliminarmente, este tópico procura apresentar os mecanismos de recuperação da informação que têm vindo a subsidiar a pesquisa em curso, os métodos de abordagem e procedimento, o nível da pesquisa, as técnicas e os instrumentos adequados à problemática, incluindo-se o objeto de estudo.
A partir da abordagem qualitativa e quantitativa do fenômeno informacional, a pesquisa apresenta conteúdos sobre biografia de médicas-cultural, observando-se as ações dessas profissionais em suas raízes culturais, verificando pontos relacionados com a inteligibilidade de suas expressões. Nesse processo, reconhece-se maior incidência em informações que colocam aspectos especiais quanto à vida e pensamento de mulheres singulares e plurais, embora distantes por civilizações desiguais, manifestando-se e, afinal, ressignificando-se tão próximas em suas buscas. Esta questão leva a que se contextualize a biografia das médicas indicadas numa sequência temporal.
No século XIX e ainda no século XX, o cotidiano das mulheres brasileiras diferenciava-se de acordo com a condição social, racial e econômica. Às moças dos grupos sociais privilegiados eram oferecidas ao ensino da leitura, da escrita e da matemática, além de aulas de piano, francês, ministradas em suas próprias residências ou em escolas religiosas, além da aprendizagem das práticas domésticas, nas quais se incluía a culinária, os bordados e as rendas. Por outro lado, já as meninas pobres estavam desde muito cedo envolvidas nas atividades domésticas, no trabalho da roça e no cuidado dedicado aos irmãos mais novos, mas sempre sem acesso a escolarização. E quanto às meninas negras, a educação decorria diariamente na violência do seu trabalho e na luta pela sobrevivência e resistência (VAITSMAN, 1994).
Quanto ao quadro social em Portugal, Teresa Pinto destaca a política socioeducativa das mulheres, numa visão de subordinação conjugal e social
...tendo conferido a igualdade e a democracia aos homens, atribuiu, em contrapartida, a subordinação e a domesticidade às mulheres, fazendo depender a ordem social do casamento, da fidelidade conjugal e das virtudes da maternidade. Em suma a existência da mulher definia-se, para aquele pensador, em função do homem (PINTO, 2000, p. 24).
Comumente, o universo feminino era constituído por um complexo sistema de deveres e obrigações familiares, orquestrado por normas e valores morais que se interpunham nas representações veladas do cotidiano feminino. Corroborando com esse pensamento, Souza (2010) acrescenta que o século XIX foi um período em que mulheres foram mais controladas em seus corpos e sentimentos. Os tratados e códigos de comportamento avolumaram-se, prescrevendo a forma “correta” de comportamento em público. Foi nesse contexto que viveram as médicas-cultural em estudo.
Será de sublinhar que a amplitude de tais trajetórias gera francas possibilidades de aprofundamento em estudos doutorais, num processo de continuidade com biografias relacionadas com o mundo luso-brasileiro. A continuação e complementação deste estudo requer a publicitação e compartilhamento de dados informacionais sobre biografia, também a partir da produção e acervo documental de médicas-culturais na plataforma digital SiS Médicos e a Cultura. Para tanto, adotamos a ordem cronológica de seus nascimentos. Observemos, a seguir, biografias de algumas médicas-cultural de Portugal e do Brasil.
5 OLHAR BIOGRÁFICO SOBRE ALGUMAS MÉDICAS-CULTURAL
5.1 RITA LOBATO VELHO LOPES
Foto 1- Rita Lobato Velho Lopes (09 de junho de 1866 – 06 de janeiro de 1954) |
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Fonte: COGNYS, 2021 |
Partindo-se para o registro do eixo axial deste trabalho, Rita Lobato Velho Lopes (Foto1) foi a primeira médica formada no Brasil. Nasceu em São Pedro do Rio Grande, Rio Grande do Sul, no dia 09 de junho de 1866. Até o ano de 1879, a legislação brasileira não permitia à mulher frequentar qualquer curso superior no País e os preconceitos da época relegavam às mulheres uma função doméstica e de dependência do homem. Rita Lobato Velho Lopes frequentou o curso secundário em Pelotas e desde cedo tinha a intenção de se formar em Medicina. Entretanto, com os impedimentos existentes na época, Rita Lobato Velho Lopes somente pôde iniciar estudos de nível superior após a assinatura da chamada Reforma Leôncio de Carvalho, Decreto 7247/1879, a qual conferia o direito de a mulher frequentar cursos superiores e obter título acadêmico (BRASIL, 1879). Rita Lobato Velho Lopes matriculou-se inicialmente na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, transferindo-se depois para a Faculdade de Medicina de Salvador, na Bahia.
Determinada em obter o título de médica, superou obstáculos próprios do seu tempo, venceu a hostilidade inicial do corpo discente e docente, conquistou espaços e recebeu do corpo docente da Faculdade de Medicina da Bahia reconhecimento com elogios. A tese de doutoramento de Rita Lobato, primeira defendida por uma mulher no Brasil, em 24 de novembro de 1887, na Faculdade de Medicina da Bahia, recebeu unânime aprovação com distinção pela comissão avaliadora, sob o título Paralelo entre métodos preconizados na operação cesariana, escrita conforme os Estatutos da mencionada Faculdade. Aquele ano foi marcante para a posição da mulher brasileira no âmbito social, para a abertura da participação de outras mulheres em cursos superiores e a positiva inserção profissional, a começar pela Medicina, área, até pouco tempo, considerada masculina. Com essa realização, Rita Lobato, além de ser a primeira mulher brasileira é também a segunda latino-americana a obter diploma de médica. Portanto, trata-se de conquista não somente para o Brasil, mas também para o cenário internacional.
De acordo com a última demografia médica, as mulheres correspondem a maioria dos profissionais na área da Medicina. Uma tendência que vem aumentando ano após ano. Entretanto, esse número nem sempre se mostrou dessa forma. O mercado de trabalho médico, de maneira geral, foi durante longo período, um ambiente formado exclusivamente por homens. Essa realidade iniciou seu processo de mudança no Brasil, quando a primeira mulher brasileira se tornou médica.
Após ter os caminhos da Medicina abertos pela pioneira Elizabeth Blackwell, primeira médica do mundo a se graduar na área, chegou a vez de Rita Lobato Velho. A gaúcha foi responsável por abrir as portas para uma nova geração de mulheres frequentarem faculdades e obterem títulos acadêmicos para o exercício da profissão médica no Brasil (COGNYS, 2021).
Após a formatura, Rita Lobato retornou ao Rio Grande do Sul. Casou-se com Antônio Maria Amaro Freitas, com quem teve uma única filha, iniciando a prática clínica médica na cidade de Jaguarão, por quase dois anos.
Nesse período, seus atendimentos tinham o objetivo principal de desconstruir paradigmas e o estigma de que o pudor de mulheres deveria vir à frente da saúde. Com essa consciência, Rita Lobato Velho incentivou mulheres a serem atendidas e examinadas por médicos especialistas na saúde feminina. Assim sendo, mais uma de suas iniciativas foi decisiva na consciencialização das mulheres sobre a importância dos cuidados ginecológicos sem preconceitos ao acesso aos médicos especialistas nessa área, independentemente de serem mulheres ou homens.
Rita Lobato Velho Lopes retornou ao Rio Grande e clinicou nos arredores de Rio Prado. Entre outras atividades sociais participou de grupos de caridade, prestou serviços gratuitos, forneceu medicamentos gratuitos e, em suas ações, prestou homenagem à sua mãe, falecida no parto de seu irmão caçula. Nos anos de 1910 a 1925, Rita Lobato Velho Lopes exerceu, com dedicação, a clínica domiciliar, decidindo encerrar as atividades de médica, antes mesmo de completar 60 anos.
Em 1926, faleceu seu marido. Doou seus aparelhos ao hospital local e ingressou na vida política encontrando terreno propício por seu temperamento e procurando ajudar as dificuldades da cidade onde clinicou por tanto tempo, sendo testemunha das dificuldades de seu povo. Ingressou no Partido Libertador. Septuagenária, foi eleita Vereadora pelo Partido Libertador por Rio Pardo, representando a Vereança com mesma dignidade e eficácia que praticou a Medicina. Exerceu seu mandato até a implantação do Estado Novo em 1937, que fechou as Câmaras Municipais. Mesmo assim continuou sendo Presidente de Honra do Comitê Feminino Pró-Candidatura Darcy Porto Bandeira, em favor ao seu conterrâneo à prefeitura de Rio Pardo. Afastou-se da vida política no final da década de 1950. Passou a viver no centro da cidade de Rio Pardo com os familiares onde ficou até 1950. De 1950 a 1952 viveu em Porto Alegre, voltando para Rio Pardo em 1952 e faleceu em 1954 (FAMOSOS QUE PARTIRAM, 2021).
O falecimento do marido Antonio Maria deixou Rita Lobato Velho abalada, motivando-a a buscar novas ocupações. Foi então que passou a apoiar, com determinação, o movimento feminista e a luta pelo direito das mulheres ao voto. Essa mudança possibilitou seu ingresso na vida política, tornando-se vereadora de Rio Prado.
A coragem somada à determinação de Rita Lobato Velho Lopes expandiu a nova maneira de ver o mundo, tendo veementemente questionado a sociedade, conquistado o direito de participar na vida política, social e cultural do Brasil, deixando, deste modo, além de legado acadêmico e profissional na área da Medicina, tornou-se exemplo de força, intensidade e determinação para as gerações vindouras. Além de outras honrarias, no centenário de seu nascimento a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos emitiu um selo comemorativo da primeira médica diplomada no Brasil, e no ano de 2010 a Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia – UFBA – aprovou que ao Anexo da Faculdade de Medicina da Bahia – FMB – fosse dado o nome da primeira mulher médica do Brasil.
5.2 ADELAIDE DE JESUS DAMAS BRAZÃO CABETE
Foto 2 – Adelaide de Jesus Damas Brazão Cabete ( 14 de setembro de 1867 – 14 de setembro de 1935) |
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Fonte: O Explorador, 2014 |
Adelaide de Jesus Damas Brazão Cabete (Foto 2) nasceu em Elvas, Portugal, em 14 de setembro de 1867 e faleceu em 14 de setembro de 1935, em Lisboa, Portugal. Foi uma das principais feministas portuguesas do século XIX-XX, republicana convicta, médica obstetra e ginecologista, professora, publicista, benemérita, pacifista, abolicionista, defensora dos animais e humanista. É descrita como uma mulher destemida, empreendedora e defensora dos oprimidos e do feminismo. Em 1900 formou-se em Medicina na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa com a tese de licenciatura A proteção às mulheres grávidas pobres. Foi professora de grande prestígio no Instituto Feminino de Odivelas, Portugal, e escritora de diversos artigos nos quais defendia seus ideais republicanos, tendo dirigido a revista Alma feminina (1920-29).
Iniciada como membro da Maçonaria (1907) na loja Humanidade (Lisboa), como o nome simbólico de Louise Michel, manteve-se sempre ligada àquela oficina, quer no período em que a loja esteve ligada ao Grande Oriente Lusitano Unido (1904-14 e 1920-23), quer quando se tornou independente (1914-20), quer ainda quando aderiu à Maçonaria do Direito Humano (1923). Foi Venerável da loja durante vários anos e Grã-mestre do Areópago Teixeira Simões (1926).
Em Elvas, Adelaide Cabete passou a infância e a primeira juventude a trabalhar no plantio da ameixa e a servir em casas ricas, onde aproveitou para aprender, sozinha, a escrever e ler. Acabou por vir para Lisboa e entrar em Medicina, com dedicação extrema ao estudo e capacidade de memorizar as minudências da Anatomia. Da sua personalidade singular e do seu notável desempenho social, como médica, pedagoga, publicista e benemérita, passando pouco mais de meio século, restam notícias partilhadas por muito poucos. Adelaide Cabete esteve ligada a várias cisões, que ela mesma interpretaria, sobretudo, a partir da sua perspectiva feminista de vanguarda, em colisão com as mulheres conformistas com as determinações de políticos da Primeira República de Portugal.
Adelaide Cabete só iniciou estudos após se casar, em 1885. Seu esposo, Manuel Ramos Fernandes Cabete, sargento autodidata, conhecedor do latim e do grego, incentivou e acompanhou Adelaide Cabete no propósito das suas escolhas, tornando-se representante de Portugal em várias frentes pelos direitos e pela ocupação da mulher na sociedade.
Como médica distinguiu-se no apoio às mulheres grávidas, na divulgação sobre cuidados materno-infantis (puericultura) e no combate ao alcoolismo, publicando estudos sobre a Puericultura, a Higiene Feminina, entre demais sempre em conexão com assuntos sociais e políticos da época vivenciados pelas mulheres. Algumas das suas produções versaram sobre Ensino Doméstico (1913), Protecção à Mulher Grávida (1924) e A Luta Anti-Alcoólica nas Escolas (1924). Foi professora de Higiene no Instituto Feminino de Odivelas.
Republicana e feminista, Adelaide Cabete desenvolveu intensa atividade militante a favor do estabelecimento daquele regime político e da dignidade do estatuto da mulher, colaborando na imprensa feminista da época. Esta médica-cultural promoveu os primeiros congressos abolicionistas da prostituição, participou na fundação da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas (1909), no Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (1914) e nas Ligas da Bondade. Foi Presidente da Cruzada Nacional das Mulheres Portuguesas e cooperou também na organização do 1º Congresso Feminista e de Educação (1924). Participou ainda no Congresso Feminista de Gant (1913) e representou o governo português no 1º Congresso Feminista Internacional (1923), que decorreu em Itália.
Publicou, palestrou em diversos eventos científicos, políticos e culturais, concedeu marcantes entrevistas, as quais demonstram firmeza em seus ideias, a exemplo da conversa franca entre ela e o veículo Última Hora, 11 de Novembro de 1930, p. 7, col 2, publicada no livro Adelaide Cabete (1867-1935) de autoria da investigadora Isabel Lousada, e a seguir:
V.ª Ex.ª continua sempre dando o seu esforço à causa feminista? D. Adelaide Cabette responde-nos imediatamente: – Sempre. E Portugal, em especial, necessita da minha acção. O feminismo é uma questão humana e, como tal, avança em todo o mundo como todas as ideias progressivas. Ainda mais, a sua marcha é proporcional ao estado da civilização do país em que ele domina. Nos países em que a mulher tem o uso pleno dos seus direitos políticos, quer dizer nos países em que a mulher acompanha o homem na Administração Pública como na América do Norte, Inglaterra, Holanda, Suécia, Dinamarca, etc., eles são todos superiores aos outros na economia, na educação, na assistência e sobre tudo, na paz. Enfim são esses os países mais felizes do mundo. Em compensação nos países onde [o] feminismo se encontra num estado de atraso confrangedor, como Portugal e o México onde a mulher não tem qualquer interferência nos negócios do estado são aqueles onde há mais revoluções. […] O que as feministas querem é que se dê liberdade e que se não censure aquelas mulheres que se julgam aptas para mais alguma coisa além da sua acção doméstica. Tenho a certeza absoluta que se a Sociedade das Nações fosse organizada igualmente por homens e mulheres a Paz Universal não seria uma utopia. Elas resolveriam todas as questões melindrosas com honra para ambas as partes e a Paz seria tão segura quanto maior fosse o número de mães que lá houvesse. Entrevista dada ao Última Hora, 11 de Novembro de 1930, p. 7, col 2 (LOUSADA, 2010, p.87).
Dezenas de declarações e depoimentos públicos foram apresentadas por Adelaide Cabete, em tempos sombrios de repressão, quanto ao acesso das mulheres nos diversos espaços da sociedade. Militante pela defesa das mulheres, negros, crianças, pobres, destacou-se também na conquista do voto feminino. O caminho pelo sufrágio feminino foi longo e, grande, foi (ainda é por parte de muitos) a resistência contra a emancipação da mulher, pela igualdade entre homens e mulheres, como base em sua complementaridade nas relações humanas, dados retratados em vários compêndios. E, em Portugal, como no mundo inteiro, a luta pelo sufrágio foi intensa e contou com a determinação de personagens femininas. Quanto ao movimento pelo sufrágio feminino, Adelaide Cabete enfatizou:
O sufrágio feminino todos os novos partidos da República introduziram nos seus programas o voto feminino e, parece até que em alguns com letras bem gordas para se verem bem ao longe, e se não era para inglês ver era, pelo menos para as mulheres verem. Pois bem, quando os partidos ascendiam ao mando esqueciam o programa e as promessas, até o próprio partido democrático, partido que tantas vezes e por tanto tempo desfrutou o poder, pois até esse partido, incontestavelmente o maior partido da República, nunca deu execução a essa parte do programa. Seria receio? Quanto a mim julgo que a causa era a amnésia, doença de que eram atacados todos os meus correligionários logo que subiam ao poder (CABETE, 1931, p. 1).
Adelaide Cabete marcou profundamente o lançamento do século XX português. Porém, desiludida com a nova situação política do país resultante da imposição da ditadura do Estado Novo (1926), partiu para Angola, dedicando-se mais à Medicina.
5.3 ÍTALA SILVA DE OLIVEIRA
Foto 3 – Ítala Silva de Oliveira (18 de outubro de 1897- 1984) |
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Fonte: INFONET, 2006 |
Ítala Silva de Oliveira (Foto 3) nasceu em 18 de outubro de 1897, na cidade de Aracaju, e foi filha de Silvano Auto de Oliveira e Marcionila Silva de Oliveira, vindo a falecer em 1984. Estudou na capital sergipana como interna no Colégio Nossa Senhora de Lurdes e continuou seus estudos no Atheneu Sergipano onde cursou o ginasial, formando-se em Ciências e Letras, e iniciou atividades como docente.
Como professora teve uma forte atuação política em sua cidade. Participando em cursos de alfabetização para adultos e defendendo sempre a instrução feminina, desde jovem que se dedicou à escrita de textos, muitos deles publicados em jornais sergipanos, e com destaque para o “Diário da Manhã” e o “Correio de Aracaju”. Nestas suas publicações, fazia defesa da instrução pública, sobretudo das mulheres, lutava pelo engajamento da sociedade e contra o analfabetismo e a emancipação femininas (FREITAS, 2003).
Segundo Santos (2017), Ítala Silva de Oliveira pertencia a uma família abastada, e desde o ensino médio que tinha em mente realizar um curso superior. Com este propósito, por volta de 1921 foi para a capital do estado da Bahia, Salvador, realizou e concluiu o curso de Medicina, diplomando-se como parteira em 1922. Em novembro de 1927 recebeu o grau de Doutora em Ciências Médico-Cirúrgicas pela Faculdade de Medicina da Bahia, defendendo Tese intitulada Da sexualidade e da Educação Sexual, tornando-se assim a primeira sergipana diplomada em Medicina.
Em sua Tese, Ítala Silva de Oliveira, de maneira profunda, bastante instigante e revolucionadora, para a época, discutiu os temas da instrução feminina e da importância da educação sexual para as mulheres, além de salientar a necessidade do prazer feminino nas relações sexuais, um grande tabu para aquela época (FREITAS, 2003). Destacamos uma das epígrafes da tese de doutoramento da médica-cultural Ítala Silva de Oliveira, bem propícia à problematização da citada pesquisa por ela defendida e aprovada por lentes catedráticos da Faculdade de Medicina da Bahia: “Ignorancia e pureza jamais foram synonymos” (OLIVEIRA, 1927).
Ainda acerca dessa sua tese, Santos (2017) afirma que Ítala Silva de Oliveira imprimiu, em suas produções e atividades profissionais, a importância e a necessidade da educação sexual no eixo escolar, apontando prejuízos de reformas contrárias à inserção de estudos sobre essa temática aos jovens. Todavia, afirmou ser a educação sexual uma das formas mais eficazes de prevenir e enfrentar graves problemas de ordem pessoal e social, além de defender o diálogo nas escolas sobre temas que envolvem sexualidade como benefícios à saúde sexual, física e emocional dos mais jovens. Ítala Silva de Oliveira também abordou a questão feminista em torno da puberdade, casamento e envelhecimento feminino, calculando-se que as suas reflexões sobre o assunto não devam ter sido bem acolhidas por uma parte da sociedade, empenhadamente machista na sua época.
Nas primeiras décadas do século XX, Ítala Silva de Oliveira enfrentou o patriarcado e uma sociedade extremamente moralista, com debates sobre assuntos de sexualidade e educação sexual, apontou falhas da estrutura familiar da época no processo da educação e responsabilizou ainda a religião por estimular os princípios morais que negavam aos jovens o avanço de estudos acerca dessa mesma educação sexual, e sua divulgação mais ampla. Somando com outras atividades, esta médica-cultural foi uma crítica voraz do sistema educacional do seu tempo: “por não educar devidamente as mulheres, de não lhes dar as mesmas oportunidades de se educarem, se profissionalizarem e trabalharem, como eram concedidas aos homens” (SANTOS, 2017, p. 28).
Conforme já referido, Ítala Oliveira teve grande participação no meio jornalístico. Com a divulgação de temas importantes para a sociedade, tornou-se uma mulher cuja vida intelectual foi muito ativa, afirmando a presença feminina no jornalismo de Aracaju nas primeiras décadas do século XX e, com outras produções, também foi grande colaboradora na “Revista Feminina” editada em São Paulo. Atuou como professora e primeira secretária da Liga Sergipense contra o Analfabetismo, lecionando também na Escola Normal e escolas privadas femininas. Esta médica-cultural entendia que a moda, o cinema, a leitura de romances e as danças da época para as jovens não eram adequadas, pelo que elas deveriam passar mais tempo lendo jornais, se envolvendo em atividades filantrópicas e sociais, para favorecimento da emancipação feminina, além de ampliar os seus leques de estudos.
Nesta moldura, Ítala Oliveira defendeu, com veemência, a necessidade de o homem ser educado de forma a respeitar a mulher. O seu maior e contundente desiderato foi o de determinar, em seus textos e através das suas ações, o imprescindível papel social na implementação da educação sexual nas escolas, reverberando, sobretudo na mulher, a necessidade de se conhecer a si mesma, o seu corpo, os seus desejos, tornando-se assim mais fácil controlá-los e resguardá-los, evitando, inclusive, abusos sexuais, tudo isto resultando num bem para a mulher e para a sociedade (FREITAS, 2003).
Após a formatura, Ítala Oliveira foi atuar na área médica como ginecologista e clínica geral, num posto de saúde público no bairro da Penha, na cidade do Rio de Janeiro. Alguns anos mais tarde também abriu um consultório particular, neste mesmo bairro. Após a mudança para a capital carioca, nunca mais retornou a Aracaju, falecendo com 87 anos, no Rio de Janeiro, em 1984 (INFONET, 2006).
6 PONTO DE CHEGADA
Neste sumariado estudo, e como ponto de chegada, cremos que se tenha percebido que esta pesquisa destaca questões sobre biografias de médicas-cultural, tão pouco discutidas no que diz respeito às escolhas entre produzir apenas ciência, abandoná-la, juntá-la ou acumulá-la às possibilidades de múltiplas formas de expressão criativa. Foram apresentados fragmentos de exponenciais biografias, disponibilizando o olhar breve sobre médicas-cultural com seus mais variados embates da temporalidade e espacialidade, tendo em vista determinantes sociais, políticas e culturais oriundas dos séculos XIX e XX, repercutidas na atualidade.
Cumprirá ainda dizer que não se esgotam neste estudo os dados sobre as biografias das médicas-cultural Rita Lobato Velho Lopes, Adelaide de Jesus Damas Brazão Cabete e Ítala Silva de Oliveira, diante da grandeza das suas produções mescladas entre o saber fazer ciência e as causas sociais direcionadas à emancipação da mulher, ainda como combatentes pela defesa da igualdade de gênero, raça e etnia, aspectos fortemente presentes nas suas relações sociais e nos seus legados culturais.
Compreendemos que a escrita biográfica das médicas-cultural Rita Lobato Velho Lopes, Adelaide Cabete e Ítala Silva de Oliveira revela-se, neste estudo, como um locus determinante à revalorização das citadas protagonistas, à compreensão do passado sem que o considere numa unidade concluída. Interessa, especialmente, demonstrar a candência existente entre seus projetos de vida. Assim sendo, este exercício não se encerra por aqui, pois facilmente se percebe que é um tema merecedor de outros capítulos associados, pretendendo-se contribuir para o preenchimento de lacuna referencial, ficando em aberto para que possa ser explorado por futuras abordagens e problematizações através de novas escritas em matéria de biografias de mulheres representativas da intelligentsia, ainda tão incipientes na atual literatura.
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[1]Doutora em Letras pela UFBA, Pós-Doutora em Ciência da Informação em Plataformas Digitais pela Universidade do Porto (U.Porto), Professora titular da UFBA. Líder do Grupo de Pesquisa G-ACERVOS - Memória, Patrimônio, Cultura, Informação e Plataformas Digitais. Memorialista. Escritora.
[2] Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe. Bacharel em Biblioteconomia e Documentação (ICI-UFBA). Bibliotecário e Pesquisador do Instituto Federal de Sergipe (IFS). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre História das Bibliotecas de Ensino Superior do Estado de Sergipe (GEPHIBES). Membro do Grupo de Pesquisa G-ACERVOS. Escritor.
[3] Doutora pela Faculdade de Letras (FLUP), Universidade do Porto (U.Porto), Portugal. Especialista em Literatura Portuguesa e Literatura Comparada Francesa e Inglesa. Membro integrado do Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (CITCEM), FLUP e do Grupo de Pesquisa G-ACERVOS. Escritora.
[4] A Faculdade de Medicina de Sergipe foi criada em 1961, durante o governo de Luiz Garcia (1959-1962) que, ao criar a Secretaria de Estado da Educação, Cultura e Saúde, convidou o médico Antônio Garcia Filho para assumir o cargo. Os médicos sergipanos no século XIX tiveram formação fora do estado sergipano (SILVA, 2018), muitos deles foram alunos da Escola de Cirurgia da Bahia, criada em 18 de fevereiro de 1808. Esta, “graduou profissionais com a denominação de “cirurgiões formados” até 1832. A diplomação de “médicos formados” só era feita aos graduados em Faculdades de Medicina de Portugal, sobretudo a de Coimbra, ou de outros países europeus. Com a reforma do ensino médico em 1832 na Regência Trina, a Faculdade de Medicina da Bahia (FMB), nova denominação da Escola, passou a formar o “médico”, que também recebia o título de Doutor em Medicina caso defendesse a Tese Doutoral ou Inaugural. Os que não defendiam a tese eram “Bacharéis em Medicina”. Depois a exigência da tese se tornou obrigatória.” (JACOBINA, 2012, p.132)
[5] 'Usam-se ainda as expressões «espólio arqueológico» para significar o conjunto de peças ou artefactos de uma estação arqueológica; «espólio bibliográfico» para representar os livros, a biblioteca, de alguém morto; «espólio documental» para representar os documentos (arquivo pessoal), incluindo muitas vezes também a biblioteca, de alguém morto; «espólio literário» para representar os textos literários de um escritor ou autor morto; «espólio científico» para representar os textos de um cientista ou autor morto; «espólio musical» para representar as partituras e/ou peças musicais de um músico ou compositor morto; «espólio fotográfico» para representar as fotografias de um fotógrafo morto. Com as cambiantes salientadas, usará, apesar de tudo, de maior rigor se se referir a acervo para representar os bens patrimoniais de alguém vivo e a espólio para representar os bens de alguém morto (BARATA, 2011). Indica-se também a leitura do livro DUARTE, Zeny. O Espólio Incomensurável de Godofredo Filho: Resgate da Memória e Estudo Arquivístico. Salvador: ICI, 2005. 234p.il.